Estatização de empresa de alimentos pode garantir soberania para a Argentina?

Neste sentido, Fernández destacou que o governo, de fato, precisa de novas ferramentas: os acordos com as grandes empresas não funcionaram, uma vez que a trágica e crescente falta de acesso da população aos alimentos não entram nas prioridades do poder econômico concentrado; tampouco as sanções tiveram efetividade.

Uma agroexportadora estatal

Com participação ativa do Estado, Vicentin seria o que na Argentina se chama empresa testemunha — ou seja, uma estatal que funciona como parâmetro para avaliar as empresas privadas do setor, neste caso, do mercado de grãos. Uma saída considerada não apenas útil mas necessária em um contexto de alta pressão sobre os preços internos, conformados pelas multinacionais que resistem às políticas de controle da inflação.

Um exemplo já existente de empresa testemunha no país é a petrolífera YPF, que recentemente completou 100 anos. “Hoje, pagamos US$ 3,40 pelo gás em boca de poço, e nos Estados Unidos está US$ 6,50. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a YPF esteja nas mãos do Estado”, pontuou o presidente. “Agora, no quesito alimentar, temos que fazer algo que nos permita ter uma ferramenta como uma empresa testemunha para ordenar esse setor”, concluiu. Com seu braço no setor agro, a firma YPF Agro, seria incorporada com a cerealífera em uma suposta intervenção .

Se bem há dúvidas sobre os ânimos e a força política da coalizão governista para avançar sobre a cerealífera, o consenso reside na fala do presidente sobre a necessidade de repensar a estrutura do setor alimentício no país, e isso inclui o controle e a presença do Estado na comercialização, na logística e na legislação que rege o negócio dos alimentos.

Alimento como mercado mundial

Um dos principais problemas nessa estrutura foi detalhada recentemente pela Equipe de Pesquisa Política (EdiPo) e o Monitor de Atualidade do Trabalho e a Economia (Mate): aumentam as exportações, mas não aumentam as reservas do país. A pesquisa, publicada neste mês na revista Crisis, destacou que entre 8 e 10 empresas que controlam o comércio exterior argentino se sustentam em um decreto da época da ditadura, jamais revogado, que permite uma via legal para a fuga de divisas rumo a paraísos fiscais: a chamada “planificação financeira criativa”.

“Consiste em um desenho financeiro com a rede de empresas internacionais para transportar parte do lucro e das vendas para praças de baixa tributação fiscal”, explica o jornalista Mario Santucho, integrante da EdiPo. “Mais de 95% das vendas argentinas aos países asiáticos [principais compradores] são trianguladas, em geral em quatro praças principais: Países Baixos, Suíça, Estados Unidos ou Uruguai. Assim, se subnotifica com menor preço o que efetivamente vendem ao comprador final.”

O decreto da ditadura que facilita essas operações com tom de legalidade define que as vendas ao exterior sejam registradas em forma de declaração jurada ao Estado, e a exportação efetiva pode ser realizada até um ano depois de apresentado o documento. A retenção sobre o valor exportado é aplicado sobre o valor da data declarada, e não o da exportação concretizada.

“No dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, 24 de fevereiro, se sabia que o mercado de commodities subiria exponencialmente”, conta Santucho. “Nesse mesmo dia, os CEOs dessas oito multinacionais que concentram 95% do setor de cereais e oleaginosas decidiram declarar uma quantidade de vendas que representa, só em azeite de soja, 40% de toda a colheita do ano.”

“Essas empresas concentram 95% das exportações, o que representa metade das vendas ao exterior do país”, afirma. “A grande pergunta é como exercer algum tipo de soberania sobre isso, porque desde os anos 1990, esse funil define metade das exportações na Argentina e está em mãos privadas, concentradas e, além disso, estrangeirizadas.”

Recuperar soberania

O debate sobre a possível intervenção estatal na Vicentin ganha, então, uma amplitude que alcança toda a região. Como portadores de matérias primas e da dependência do ingresso de dólares, os países da América Latina compartilham a sujeição imposta pelo desenho geopolítico que, como aponta o deputado do Parlamento do Mercosul, Gastón Harispe, definiu o abandono regional do processo de industrialização. Isso envolveu a série de privatizações nos anos 1990 que, na Argentina, implicou na entrega das ferrovias, da construção naval e das próprias hidrovias.

“É uma fortaleza simbólica enorme que a sociedade possa debater sobre Vicentin e o Canal de Magdalena, assuntos que antes não eram tema de debate”, aponta, mencionando um dos canais que poderia funcionar, junto com o investimento na indústria naval, como ferramenta para transportar os alimentos do país.

“A grande luta pela soberania alimentar é a conexão entre os sistemas de comércio exterior e sobre toda a produção de alimentos”, opina Harispe. “O dia em que rompermos com as cadeias logísticas financeirizadas e discutirmos entre as nossas sociedades e comunidades organizadas em prol de uma transformação profunda da matriz produtiva e da logística, vamos estar falando de um grande ciclo de distribuição.”

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