Os bancos centrais do mundo, em especial o Fed e o ECB, estão em um dilema implacável como o dos marinheiros da Grécia antiga.
Homero nos relata como Odisseu navegou o corredor entre dois terríveis monstros marinhos, Cila e Caríbdis. Os monstros irresistíveis da mitologia grega habitavam o estreito de Medina, que separa por meros três quilômetros a costa da Calábria (o bico da “bota” da Itália) da ilha da Sicília.
Cila, na costa italiana, com quatro metros e seis assustadoras cabeças, devorava tudo que passava em frente à sua gruta. Caríbdis, junto à Sicília, cuspia enormes quantidades de água em redemoinhos que afundavam todos os barcos.
O dilema atual é atravessar ileso o estreito espaço entre Cila, monstro da inflação, e Caríbdis, a recessão que afunda todos. A meta é evitar ambos. No entanto, não parece uma tarefa possível no mundo real. A alternativa passou a ser escolher o menor dos males.
O erro de navegação começou bem antes, entre 2008 e a pandemia de 2020. O Fed vinha exageradamente desviando de Caríbdis, a recessão, e, consequentemente, se aproximando de Cila.
Ao sinal de problema —na economia, nos bancos ou na Bolsa—, sempre acionou o botão mágico de criar dinheiro, com o quantitative easing (QE). Em 2020, Caríbdis apareceu de repente, e o timoneiro apontou a proa na direção de Cila. “Todo vapor!”
O balanço do Fed saltou de US$ 4 trilhões para US$ 9 trilhões, injeção monetária sem precedentes na história. Nem mesmo durante a temerária gestão do Fed na década de 1970 houve tamanha ousadia.
O discurso repetido exaustivamente em 2021 de que a inflação era temporária foi alterado ao se avistarem as enormes cabeças de Cila. A inflação em dólar chegou a 8,6% nos últimos 12 meses, e o Fed surpreendeu na semana passada ao subir as taxas de juro em 0,75 ponto percentual, mais que o 0,50 ponto do nosso banco central. “Timoneiro! Todo o leme à bombordo, direção… Caríbdis?” Ops.
Na semana passada, a Bolsa americana entrou no território do temido “bear market”, caindo mais de 20% em relação ao seu ponto mais alto de janeiro. Há uma enxurrada de revisões de crescimento econômico, sempre para baixo.
Muitos investidores reconhecem que, no passado, sempre que os juros em dólar subiram, algo colapsou em algum ponto da economia. Assim, se protegem vendendo algumas posições. Mas ainda podem estar otimistas em demasia.
Circula uma crença equivocada de que a inflação tem a ver com as rupturas das cadeias de suprimento, com a guerra, e com a ganância das empresas de petróleo e energia. Tão logo tais fatores forem mitigados, creem, a inflação retrocederá. Errado.
A inflação tem origem monetária. Nos anos 1970, o Fed acreditou na tese furada de inflação de custos, jogou a culpa nos árabes e gerou uma inflação sem precedentes. Ao assumir o cargo, Paul Volcker precisou dar um choque de mais de dez pontos percentuais nos juros para a inflação ceder.
Portanto, enquanto a taxa de juros (hoje em 1,75%) permanecer muito abaixo da inflação projetada para os 12 meses posteriores (6,5%), não haverá muita esperança para a interrupção do processo inflacionário. A contração monetária anunciada, o QT (quantitative tightening), embora positiva, levará mais de dois anos para cancelar parte das injeções extraordinárias de 2020.
O Fed tem rugido grosso, mas em ações ainda é um gatinho manhoso. É preciso que reconheça sua responsabilidade na produção da inflação primeiro para que resolva agir vigorosamente para contê-la.
Sua maior dificuldade é que a verdade pode ser revelada: na obscuridade da gruta, o Fed sempre alimentou o monstro. “Cila, eu sou o seu pai.”
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