É enganoso o conteúdo de um tuíte viral que atribui à vacinação contra a Covid-19 um suposto aumento no número de casos de mortes súbitas entre atletas. O tuíte, escrito em francês, afirma que 673 atletas morreram num acumulado de 16 meses após o início da vacinação —até abril de 2022—, enquanto o número total de mortes deste tipo entre atletas, de 1966 até 2004, foi de apenas 1.101 casos no mundo. A fonte dos dados, conforme apurado pelo Projeto Comprova, é um post em constante atualização em um site com conteúdo antivacina.
Contrariando a afirmação feita no tuíte, não existe nenhum dado estatístico oficial que aponte que mortes súbitas de atletas foram de fato associadas à vacinação contra o coronavírus. Além disso, segundo especialista ouvido pela reportagem, não é possível comparar casos recentes de morte súbita com um levantamento em um recorte temporal tão amplo, uma vez que a metodologia de coleta dos dados e as formas de notificação mudaram muito nas últimas décadas —sem contar que, no passado, havia uma subnotificação maior do que existe hoje.
O tuíte aqui verificado não cita a fonte dos dados apontados, mas a reportagem localizou os números em um site com conteúdo antivacina. A página lista uma sequência de casos com nome das pessoas, idade, circunstância em que morreram e alguma frase que especula uma relação entre o óbito e a vacinação, como um intervalo de tempo entre a aplicação do imunizante e o mal súbito. Em muitas situações, há links para “notícias” sobre os falecimentos. Contudo, são contabilizados entre os óbitos atribuídos à vacina mortes de pessoas que não foram vacinadas, vítimas de acidentes, pessoas com histórico de doenças cardiovasculares e até algumas que morreram em decorrência de complicações da Covid-19.
O COI (Comitê Olímpico Internacional), que adota um protocolo de segurança para casos de morte súbita cardíaca, não possui dados sobre esses eventos em atletas durante a pandemia ou após o início da vacinação, nem a Fifa (Federação Internacional de Futebol). De acordo com a Sbmee (Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte), embora haja casos que levantem uma possibilidade de associação entre mal súbito e as vacinas contra o Sars-CoV-2, os casos são “muito raros e insuficientes para sustentar uma suficiente relação de causalidade”.
A fotografia utilizada no post, que mostra um jogador de futebol caído no campo enquanto um profissional tenta reanimá-lo, é antiga e não pode ser associada à pandemia: ela circula pela internet pelo menos desde novembro de 2013 e faz parte de uma peça de publicidade de uma marca de desfibriladores cujo público-alvo são equipes de futebol.
Para o Comprova, enganoso é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação
Juntos, o tuíte original, em francês, e o compartilhado, em português, somavam mais de 9 mil interações até o final da manhã de 13 de junho de 2022.
O que diz o autor da publicação
O Comprova entrou em contato com o site que publicou a lista de casos de morte súbita no esporte supostamente relacionados à vacinação, mas não obteve resposta até a publicação desta checagem.
Como verificamos
O primeiro passo foi tentar localizar, por meio de busca reversa de imagens, a fotografia utilizada no post. Ela mostra um jogador caído em um gramado, cercado por outros atletas e sendo atendido por um socorrista. De acordo com registros da ferramenta TinEye, a imagem já circula pela internet desde dezembro de 2013. A mesma fotografia com recorte parecido foi usada em um blog britânico sobre atividade física em 18 de novembro de 2013, ou seja, bem antes da pandemia.
Em seguida, a reportagem buscou por publicações que eventualmente associassem casos de morte súbita entre atletas e vacinas contra a Covid-19. Apenas páginas na internet com conteúdo antivacina mostravam listas com nomes, datas e locais dos supostos óbitos. Uma dessas páginas continha exatamente os mesmos dados citados no tuíte. O levantamento foi feito com base na comunicação de casos a partir de postagens e notícias na internet.
O Comprova buscou, então, números oficiais em revistas e grupos científicos e em entidades ligadas ao esporte: a ACC (American College of Cardiology), a Sobrac (Sociedade Brasileira de Cardiologia), a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte, a Fims (Federação Internacional de Medicina Esportiva), o Comitê Olímpico Internacional e a Federação Internacional de Futebol.
Também foram consultadas outras checagens e notícias na imprensa sobre morte súbita de atletas, além de acionados os responsáveis pelos dados utilizados nos tuítes.
Pessoas não imunizadas
Os números compartilhados no Twitter são os mesmos que aparecem em um site que afirma publicar conteúdos sobre ciência, mas que costuma questionar a eficácia, segurança e até a necessidade de se tomar a vacina contra a Covid. O autor do post atualiza a lista de “casos” mês a mês, desde o início da vacinação. No entanto, não há referências científicas para as ocorrências, que são noticiadas em sites especializados em esportes, na imprensa profissional ou até em redes sociais. Em muitas situações, não há sequer menção ao fato de a pessoa ter recebido a vacina ou de o óbito ser associado a uma reação pelo imunizante.
É o caso, por exemplo, do primeiro atleta listado pelo site, o jogador de futebol brasileiro Alex Apolinário. Ele tinha 24 anos e jogava em Portugal, quando sofreu uma parada cardiorrespiratória em campo no dia 3 de janeiro de 2021 e acabou morrendo num hospital quatro dias depois. Alex não havia sido vacinado ainda, o que automaticamente exclui a possibilidade de o imunizante ter provocado a parada. Outro caso parecido é o da tenista italiana Cloe Giani Giavazzi, de apenas 12 anos, que sofreu um mal súbito em Milão, na Itália, em junho de 2021. Ela também não estava vacinada e a academia de tênis onde ela jogava informou que a associação entre a morte e o imunizante é infundada.
Pelo menos três mortes de atletas por Covid foram listadas pelo site como óbitos relacionados à vacina: a do jogador de hóquei russo Vladislav Yegin, que morreu aos 32 anos em maio do ano passado; a do patinador bielorusso Igor Zhelezovski, de 57; e a do jogador de futebol brasileiro Waldir Lucas Pereira, de 39, que morreu em junho de 2021.
O site também atribui à vacina mortes cuja associação faz pouco ou nenhum sentido. O jogador americano de beisebol Sang Ho Baek morreu aos 20 anos. Ele tinha tomado a vacina, mas foi vítima de complicações durante uma cirurgia no cotovelo. O jogador de handebol macedônio Nikola Danilovski, de 24, morreu afogado enquanto pescava com o pai. Já a piloto de motovelocidade russa Tatiana Igushina, de 31 anos, morreu em um trágico acidente de carro, o mesmo que também vitimou o piloto russo Ivan Kurenbin, 31. Ele também foi listado como uma possível vítima de morte súbita provocada pela vacina.
Há, por fim, casos de pessoas que morreram em decorrência de doenças cardíacas pré-existentes, como foi o caso do jogador americano de futebol Ivan Hicks, 16, que tinha uma doença cardiovascular; do jogador de basquete espanhol Juan Manuel Nuñez Martín, 16, que morreu quando estava internado para tratar de uma doença cardíaca; e do ex-jogador americano de beisebol, Hank Aaron, que tinha 86 anos e morreu de causas naturais.
Há até “não atletas” entre os profissionais listados pelo site: a escocesa Laura Henderson, 42 anos, morreu quando corria num parque com duas amigas. O garoto brasileiro Brian Saes, 15, não era ciclista – ele apenas estava andando de bicicleta quando sofreu uma parada cardíaca em Santa Catarina. A irlandesa Catharine Keane, 31, era publicitária e praticava ginástica – ela morreu durante o sono.
Casos raros e sem causalidade
O cardiologista Marcelo Leitão, diretor científico da Sbmee explica que casos de morte súbita, mesmo subnotificados, são raros. Ele também afirma que os registros não aumentaram durante a pandemia, o que desmente a tese de que houve aumento significativo após a vacinação: “Nós não temos nenhum dado estatístico oficial que diga que isso aconteceu de fato”, afirma o especialista, que também assinou uma nota técnica da Sbmee de janeiro de 2022.
Na época, a Sbmee se pronunciou porque o mesmo site que serve de fonte para o tuíte aqui verificado vinha levantando essa suposta relação. A nota dizia que, “embora existam relatos, em publicações científicas, levantando a possibilidade de associação entre morte súbita e vacinas contra a Sars-COV-2, estes são muito raros e insuficientes para sustentar uma consistente relação de causalidade”. A nota também afirma não haver “nenhuma evidência científica mostrando qualquer tipo de elevação no número de casos de morte súbita em atletas, acima dos índices habituais”.
Marcelo Leitão observa que há efeitos adversos nestas e em outras vacinas, contra outras doenças. Quando os malefícios superam os benefícios, vacinas ou medicamentos são retirados de circulação, mas isso não se aplica aos imunizantes contra a Covid, afirma. “Pelo menos até o momento, em relação às vacinas, apesar de haver relatos de efeitos secundários com todas elas, os efeitos secundários acontecem em incidências muito baixas e os benefícios da vacinação são absolutamente consistentes, fazendo com que se mantenha a recomendação da vacinação”, pontua.
Ele destaca, ainda, que efeitos adversos como as miocardites, por exemplo, são mais comuns em pessoas que tiveram a Covid-19 do que em pessoas que tomaram a vacina. “Reduzir a gravidade, o número de infecções pela vacina, é algo que traz uma proteção inclusive no que diz respeito às eventuais miocardites que podem acontecer. Então, é muito mais arriscado não se vacinar, pegar Cvid e ter miocardite do que se vacinar e ter uma miocardite como efeito adverso porque a frequência é muito maior nas situações pós-Covid”, alerta.
Comparação
O site que lista as supostas mortes de atletas decorrentes da vacinação faz uma comparação infundada: a de que entre 1966 e 2004 foram registradas apenas 1.101 mortes súbitas de atletas com menos de 35 anos —29 mortes por ano—, enquanto ocorreram 673 óbitos de atletas em 16 meses de vacinação contra a Covid, uma média de 42 por mês, ou 504 por ano.
Os números apontados entre 1966 e 2004 constam em um levantamento publicado em 2006 no European Journal of Preventive Cardiology. O estudo leva em conta números de eventos de morte súbita cardíaca no esporte relatados na literatura médica entre 1966 e 2004 e busca chegar a um protocolo de triagem de pré-participação para ser aplicado pelo Comitê Olímpico Internacional. Para o cardiologista Marcelo Leitão, contudo, mesmo que os dados sejam reais, a comparação com supostos casos na atualidade é inadequada, tendo em vista que a subnotificação era maior décadas atrás, e a metodologia de notificação também mudou. Muitas pessoas morriam praticando exercícios, mas os casos não eram relatados como morte súbita no esporte.
“É muito complicado você fazer uma comparação de dados estatísticos que falam de eventos de morte súbita numa época em que a capacidade de se identificar e se fazer esse tipo de levantamento era muito menos eficiente do que ela é hoje, apesar de nos dias de hoje a gente saber que ela não é 100% eficiente. Tem que se tomar muito cuidado quando se faz esse tipo de comparação em períodos distintos para avaliar se a metodologia, se as características dos levantamentos eram semelhantes e seguramente isso não acontece”, explica.
Outro empecilho à comparação é a faixa etária: o artigo que levanta os dados de 1966 a 2004 leva em conta mortes súbitas em atletas com menos de 35 anos, enquanto a lista que serviu de base para o tuíte verificado contabiliza mortes de pessoas com mais de 80 anos.
Marcelo destaca que esse tipo de comparação aparece muito em sites que usam uma nomenclatura relacionada à ciência, mas que não seguem um método científico, justamente como o que serviu de fonte para o tuíte aqui verificado. “Muitas vezes, usam levantamentos inapropriados, inserem entre as mortes súbitas relacionadas à vacina indivíduos que, por exemplo, não se vacinaram, mas há uma tendência de associar isso à vacinação. A metodologia e o cuidado, o rigor do levantamento desses dados é muito questionável, então a gente não pode aceitar essa informação”, alerta.
Nenhum caso
Procurada, a Federação Internacional de Futebol informou por e-mail que “não está ciente de um aumento nos episódios de paradas cardíacas” e “nenhum caso foi assinalado em relação a indivíduos que receberam uma vacina de Covid-19”. A entidade máxima do futebol também informou que mantém contato constante com diversos centros de pesquisa para acompanhar uma variedade de tópicos médicos. Os casos de morte súbita, especificamente, são acompanhados desde janeiro de 2014 através do SRD (Registro de Morte Súbita), em parceria com a Universidade de Saarland, na Alemanha.
“A morte súbita (SD) de um atleta aparentemente saudável é um evento trágico raro que atrai a atenção da mídia, especialmente quando estão envolvidos atletas de elite. O esforço vigoroso aumenta de três a quatro vezes o risco de eventos cardíacos fatais, já que atua como um gatilho para arritmias malignas na presença de doenças cardiovasculares subjacentes. Entretanto, em geral, a atividade física regular está associada a um efeito protetor, mesmo quando se considera os riscos temporários experimentados durante a atividade atlética”, diz a nota.
Em 2020, pesquisadores da Universidade de Saarland, liderados por Florian Egger, do Instituto de Esportes e Medicina Preventiva da instituição, publicaram um artigo com base em dados da Fifa entre 2014 e 2018. Os resultados apontaram 617 casos de morte súbita cardíaca entre jogadores de futebol profissionais em 67 países. Uma vez que a morte súbita pode ser revertida, o estudo aponta que 142 jogadores sobreviveram. A principal causa de mortes súbitas entre jogadores com mais de 35 anos foi doença arterial coronariana, enquanto nos menores de 35, a maioria dos casos teve causa inexplicada.
Saúde
Há um discurso comum entre as publicações que tentam associar mortes súbitas de atletas à vacinação contra a Covid-19: a ideia de que atletas são pessoas totalmente saudáveis e que, portanto, não deveriam estar sujeitos a mortes súbitas. Isso não é verdade. “A morte súbita em atletas sempre foi uma coisa que chamou muita atenção. O que nós temos que lembrar é que atletas, embora de um modo geral sejam pessoas muito saudáveis – porque a gente sabe que pessoas que são fisicamente ativas têm um risco menor de problemas de saúde, de morte por problemas cardiovasculares – isso não confere imunidade completa a essas pessoas”, diz Marcelo Leitão.
Ele alerta que muitos atletas podem ter problemas silenciosos, que não foram detectados previamente. Nesses casos, o exercício físico, sobretudo o exercício intenso, pode ser um gatilho que desencadeia um evento de morte súbita. “Ele não sentia nada até ter o evento de morte súbita ou ele sentia alguma coisa, mas ele não informou a seu médico, ou ele fez uma avaliação e ainda assim a avaliação não conseguiu identificar algumas situações que a gente sabe que são muito difíceis de ser identificadas”, afirma o cardiologista.
Em novembro de 2019, a cardiologista Alinne Katienny Lima Silva Macambira fez uma apresentação durante o XXXVI Congresso Brasileiro de Arritmias Cardíacas falando justamente sobre mortes súbitas no esporte. Entre as razões para a morte de um atleta estão a alta exigência física, o aumento excessivo da função cardíaca, o aumento da ventilação pulmonar, desidratação, alteração eletrolítica, elevado consumo energético, diminuição da imunidade e, como mencionou Marcelo Leitão, por um gatilho para uma doença pré-existente.
Ação publicitária
A busca reversa pela imagem usada no post mostrou que ela circula pela internet há quase nove anos. Mas o fato de ela não poder ser associada à vacinação não é o único problema: é que a imagem não registra um atendimento a um atleta que sofreu um mal súbito de verdade – ela foi produzida para divulgar um produto, um modelo de desfibrilador para ser usado por equipes de futebol.
O primeiro sinal de que a foto é produzida, e não um registro jornalístico, é a organização da imagem, além das reações dos atletas: a fotografia é muito limpa e os jogadores estão dispostos na cena de modo que o atendimento fique em primeiro plano. Não há qualquer sinal genuíno de que os outros jogadores ao redor do atleta caído no chão estivessem minimamente assustados com a situação.
Outro indício de que a foto foi produzida é o fato de que muitos sites que a utilizavam no passado salvaram o arquivo com o nome “Zoll-futebol.jpg”.
Outra busca pela imagem associada a essas palavras levou a uma fotografia da mesma sequência que mostra o socorrista chegando ao campo carregando uma espécie de maleta em que aparece o nome de uma marca de desfibriladores, a Zoll, e o modelo AED Plus. O Comprova entrou em contato com os representantes da marca no Brasil, que confirmaram que a imagem não é jornalística e faz parte de um material de marketing.
Por que investigamos?
O Comprova investiga postagens que viralizam na internet com conteúdo envolvendo as eleições presidenciais deste ano, a realização de obras públicas e a pandemia. Conteúdos como este aqui verificado, que colocam em dúvida a vacinação contra a Covid-19 e atribuem a ela mortes quando não há uma relação cientificamente comprovada, são perigosos porque podem influenciar pessoas no mundo inteiro a não tomarem a vacina, o que causa um impacto negativo direto no sucesso do combate à pandemia.
O Comprova já mostrou que não havia relação entre casos de mal súbito em atletas e vacinas e também já desmentiu que jogador dinamarquês tenha se vacinado antes de sofrer mal súbito em campo.