Distribuição de passaportes russos no sul da Ucrânia pode indicar novas anexações de território

Cientista político diz que Rússia fornece apoio à população esquecida pela Ucrânia

A tese do Kremlin é sustentada pelo vice-presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Diplomacia Moderna, o cientista político Dmitry Perlin. Ao Brasil de Fato, ele cita o caso das regiões do leste ucraniano de Donetsk e Lugansk como uma crise humanitária que justificaria a assim chamada operação especial militar russa.

De acordo com ele, após a eclosão do golpe de Estado e a consequente guerra civil ucraniana, a região de Donbass “constantemente se dirigiu à Rússia por ajuda”. De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas (ONU), morreram cerca de 15 mil pessoas em Donbass nos últimos oito anos.

“É claro que tudo isso é uma tragédia horrível e não poderia continuar infinitamente. Por isso, o primeiro objetivo da operação especial militar é o fornecimento de segurança aos moradores de Donbass”, diz Perlin.

O cientista político argumenta que a distribuição de passaportes em Kherson e Zaporozhye é uma decisão que visa fornecer ajuda humanitária aos moradores dessas áreas, com o objetivo de defender os direitos legais destas pessoas.

“Como é sabido, a parte ucraniana se recusou a fornecer ajuda social, pagar aposentadorias, garantir benefícios sociais a moradores que não se encontram em territórios fora do controle [russo] em Kherson e Zaporozhye”, argumenta.

A partir da crise de 2014, as autoridades ucranianas, de acordo com o decreto do então presidente Petro Poroshenko, adotoram na época o estabelecimento de um bloqueio financeiro e econômico na região de Donbass, interrompendo, em particular, o pagamento de pensões e benefícios sociais à população destes territórios.

Conforme dados documentados o relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, elaborado entre 2018 e 2019, os deslocados internos e os moradores de comunidades ao longo da área de guerra civil sofreram com a falta de acesso a serviços básicos (especialmente água e aquecimento e cuidados de saúde) e apoio social, além da falta de habitação adequada.

Dmitry Perlin afirma ainda que a medida de Moscou se baseia em sugerir uma opção à população em conflito. “E os moradores se dispuseram em fila atrás dos passaportes russos. Ninguém foi obrigado a isso. Mas a recusa de Kiev de ajudar seus próprios cidadãos levou os moradores de Kherson a escolher esse caminho de desenvolvimento e isso é normal”, completa.

Apesar dos indícios táticos e das declarações de autoridades locais, o alto escalão do governo russo apresenta certa cautela e ainda não houve pronunciamentos incisivos no sentido de promover a incorporação de novos territórios à Federação Russa. Anteriormente, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, havia declarado que a decisão  sobre a possível integração de Kherson como parte da Federação Russa deve ser tomada pelos habitantes desta região.

Kherson está em região estratégica e pode entrar em futura negociação

O diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, por sua vez, destaca que a ausência da realização de referendos até agora — Moscou estabeleceu o controle sobre Kherson há cerca de três meses — mostra que, potencialmente, o sul da Ucrânia ainda pode ser utilizado como objeto de barganha nas negociações políticas.

“Eu não excluo que, nas regiões de Zaporizhiya e Kherson, a Rússia possa sugerir à Ucrânia a variável de Donbass, ou seja, propor alguma espécie de novo acordo de Minsk que irá prever que Kherson ou Zaporozhiya seja de alguma forma parte da Ucrânia, caso a Ucrânia reconheça o status independente de Donetsk, Lugansk e da Crimeia”, especula.

Segundo o analista, “não há decisão final sobre Kherson, há a decisão de não devolver à Ucrânia no formato anterior”.

Outro fator destacado por Bortnik é a riqueza de recursos e a importância estratégica do sul ucraniano como um importante fator dentro dos objetivos atuais da operação militar russa.

Além de ser uma ponte de acesso terrestre à Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, a região do sul da Ucrânia é rica em recursos, possui a maior usina nuclear da Europa e é uma zona-chave para o sistema agrário e de fornecimento de água e luz à Crimeia.

“Estas regiões são importantes e a Rússia mostra que está pronta para anexá-las diretamente. E o que nós vemos agora é a preparação para essa incorporação. Mas para que essa incorporação aconteça de maneira aparentemente menos nociva, é necessário mudar o clima da sociedade nas regiões, ou seja, é necessário que as pessoas, as pessoas neutras, se acostumem com o fato de que elas vão viver na Rússia”, completa.

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