“Quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas tremem então, intimidados, acovardados, batidos.” O texto é de 1955 –e sobre o Flamengo, escrito pelo cronista Nelson Rodrigues na Manchete Esportiva–, mas parece um bom resumo do que levou o Real Madrid à conquista da Champions League de 2021/22, sua 14ª.
Na decisão, neste sábado (28), em Paris, a equipe espanhola derrotou o Liverpool por 1 a 0, com um gol do brasileiro Vinicius Junior. Fechou assim uma campanha na qual enfrentou enormes dificuldades, esteve repetidas vezes perto da eliminação e derrubou adversários por quais, em boa parte dos confrontos, foi dominada.
“Não tem explicação, são coisas que só acontecem aqui. Esta camiseta nos ensina a lutar e a nunca desistir”, disse o atacante Rodrygo, herói da mais improvável virada, contra o Manchester City, nas semifinais. “Olhei para o escudo e pensei que já tínhamos conseguido outras vezes.”
Tinham mesmo.
Na fase de grupos, a possibilidade do 14º título –o dobro de triunfos do segundo colocado do ranking, o Milan– pareceu uma piada em momentos como a derrota para o minúsculo Sheriff, de Moldova. Mas o time avançou aos mata-matas e, rodada após rodada, enfrentou rivais tidos como favoritos –e que se mostraram superiores até algum instante do segundo tempo do segundo jogo.
Contra o Paris Saint-Germain, nas oitavas de final, a derrota por 1 a 0, em Paris, foi tratada como uma bênção. O goleiro Courtois precisou fazer várias defesas difíceis, uma delas em pênalti cobrado por Messi, para que o prejuízo fosse mínimo.
Em Madri, já na etapa final, Mbappé repetiu o que fizera na França e balançou a rede. A eliminação, àquela altura, parecia bem encaminhada. Então, em 17 minutos, com boa colaboração do goleiro Donnarumma, Benzema marcou três vezes. O Real estava quase caído quando o rival lhe abriu a porta.
“Vejam vocês: – uma camisa que só falta dar adeusinho e virar cambalhota. Quando o time não dá mais nada, quando a defesa baqueia, e o ataque soçobra, vem a camisa e salva tudo. Diante dela, todos se agacham, todos se põem de cócoras, todos babam de terror cósmico”, escreveu Nelson Rodrigues –em 1956, de novo na Manchete Esportiva, de novo exaltando o poder do uniforme do Flamengo.
A roupa branca do Real Madrid –inspirada na do inglês Corinthian Football Club, que, por sua vez, inspirou a criação do Sport Club Corinthians Paulista– também é pesada. Mas, quando a equipe abriu 3 a 1 sobre o Chelsea, em Londres, poucos julgaram que seria necessário evocar a mística nas quartas de final.
Na Espanha, o Chelsea –novo-rico de tradição enormemente menor– demonstrou volúpia na defesa do título de 2021 e surpreendeu, abrindo 3 a 0. De novo, já no final do jogo, o Madrid estava nas cordas. Marcou, com o brasileiro Rodrygo, e forçou a prorrogação, na qual apareceu outra vez Benzema, forte candidato a melhor do mundo em 2022.
Dessa maneira, quando o Real se viu frente a frente com outro novo-rico, o talentoso Manchester City do aclamado técnico Pep Guardiola, antes mesmo do confronto, um dos assuntos já era a diferença no peso das camisas. E o técnico madridista, o multicampeão Carlo Ancelotti, apontou que esse não era um fator apenas de terror no adversário mas especialmente de confiança nos próprios atletas de branco.
“A história que o Real Madrid tem nesta competição conta muito mais para nós do que para os rivais. Essa história ajuda os jogadores a sentir o peso desta camisa. Um peso que é positivo, não negativo”, disse o treinador italiano.
Em Manchester, sua equipe esteve três vezes atrás no marcador por dois gols de diferença. A derrota por 4 a 3, novamente, foi vista como algo positivo diante do que se viu em campo.
Em Madri, na partida de volta, a camisa teve sua melhor atuação.
O Manchester City fez 1 a 0 já aos 28 minutos do segundo tempo. E construiu chances claríssimas de marcar mais gols. Em uma delas, o goleiro Courtois foi batido por Grealish. Mas alguém vestido com a camisa do Real Madrid –Mendy, ainda que o nome impresso no uniforme fosse um detalhe– apareceu em cima da linha para evitar o pior.
Ainda assim, sobreviver era quase impossível. Então, Rodrygo marcou aos 45 e aos 46 minutos, forçando nova prorrogação. Ali, humilhada, a camisa do City apenas aguardou o golpe final da camisa rival, desferido com o auxílio de Benzema.
“O peso da camisa e o orgulho do clube também jogam”, vibrou Ancelotti, ciente de que o mérito do triunfo não era propriamente seu.
É verdade que havia gente talentosa vestindo o uniforme. Mas o Real Madrid, em momento de dificuldade financeira enquanto reforma seu estádio e em guerra política com a Uefa, a entidade que organiza o futebol europeu, não iniciou a Champions como favorito.
Mesmo na decisão, após toda a saga da campanha, a análise puramente técnica e tática apontava o Liverpool, de Jürgen Klopp, como o lado superior. E o que se viu em campo em quase todo o primeiro tempo foi justamente isso. Courtois precisou fazer várias defesas difíceis, e contar também com a trave em uma delas, para manter o placar zerado.
Do outro lado, praticamente na primeira chegada, aos 43 minutos, Benzema balançou a rede. O lance foi invalidado, por impedimento, após longa revisão em vídeo, mas estava dado o recado de que o Real, mesmo com toda a dificuldade no jogo, era o Real.
Na etapa final, quando o Liverpool tentava novamente estabelecer uma pressão –mas, desgastado, sem a mesma força–, Valverde conseguiu avançar pelo lado direito com alguma liberdade. Após o chute cruzado, aos 14, Vinicius Junior apareceu nas costas de Alexander-Arnold para completar.
Os comandados de Klopp buscaram o ataque até o final. Quando superavam os jogadores de linha, paravam em Courtois, em mais uma atuação excepcional, com o uniforme que saiu vitorioso de suas últimas sete aparições na decisão do campeonato europeu.
O hiperbólico Nelson Rodrigues, torcedor do Fluminense, previu que chegaria o dia em que o Flamengo não precisaria “de jogadores, nem de técnicos, nem de nada”. Bastaria “a camisa, aberta no arco”. “Diante do furor impotente do adversário”, ela seria “uma bastilha inexpugnável”.
O Real Madrid, claro, precisou de Courtois, Rodrygo, Benzema e Vinicius Junior. Precisou do ótimo gerenciamento de elenco de Carlo Ancelotti. Mas nenhum deles tem dúvida sobre o grande responsável pela conquista.
“Como resistir a uma camisa que tem suor próprio, que transpira sozinha, que arqueja, e soluça, e chora?”