No último dia 12 de maio, sete alpinistas norte-americanos chegaram ao pico do Everest. O que poderia parecer apenas mais uma vitória igual às dos poucos determinados que anualmente conseguem chegar ao ponto mais alto do planeta, representou uma vitória inédita: esse foi o primeiro grupo exclusivamente formado por pessoas negras a cumprir o desafio, depois de intensa campanha de crowdfunding e busca de patrocínios para o projeto Full Circle Everest.
O feito se mostra ainda maior quando se constata que, das cerca de 10 mil pessoas que conseguiram chegar ao cume desde 1953, apenas 10 haviam sido negras até então. Ou seja, esse pequeno grupo quase dobrou a conta, o que chama a atenção para um problema real: a falta de caminhantes, escaladores e trilheiros negros pelas rotas do planeta.
Não que seja difícil constatar essa realidade. Quem pratica a atividade há mais tempo sabe muito bem que, se mulheres são minoria, pessoas negras são raridade. Estatísticas não há, até porque a Embratur nunca incluiu a cor da pele na ficha que os turistas preenchem em estabelecimentos. Mas basta, como afirma o jornalista Guilherme Soares Dias, editor do blog Guia Negro, da Folha, “fazer o teste do pescoço”, e olhar ao redor para ver que a multidão de turistas é avassaladoramente branca.
“Infelizmente, as pessoas negras são atingidas pelo racismo estrutural não só sendo renegadas de espaços de apresentação, mas também sendo incutidas da ideia de que elas são as que sempre precisam trabalhar, que elas não têm direito ao lazer, viajar, fazer uma trilha”, afirma Dias. Ele lembra ainda o aspecto econômico, que faz com que, ao serem maioria entre os mais pobres, pessoas negras acabem não tendo muitas opções de turismo. “Mas mesmo entre aqueles poucos que estão entre os mais ricos, há uma questão psicológica, porque quando organizamos eventos voltados para eles, há um engajamento”.
Da comunidade para o mundo
Entre as exceções que batem de frente com a barreira psicológica e financeira, está Wallace Soares, turismólogo e curador de conteúdo do CIFS (Instituto Copenhague de Estudos de Futuros), que criou em 2015 o projeto Desbravando as Américas para percorrer, sozinho, o continente do Ushuaia até o Alasca.
“O projeto nasceu em 2014, numa das piores fases de minha vida”, conta Soares. “Estava desempregado, com muitas dívidas e sofrendo de uma grande desilusão amorosa. Resolvi que precisava viajar, conhecer o mundo, e durante uma semana fiquei trancado no quarto montando um roteiro de viagem por meio de aplicativos”.
O projeto parecia ambicioso ao morador da comunidade do Morro do Turano, no Rio de Janeiro, mas o planejamento foi cumprido à risca. “Montado o roteiro, estipulei cinco metas que incluíam conseguir um bom emprego, condicionamento físico, identificar os meios de transporte, hospedagem e documentos”, explica. “O momento de ruptura foi quando percebi que eu não precisava ser apenas mão de obra de turismo, mas que podia ser protagonista das viagens”. Em junho de 2015, botou a mochila às costas e seguiu para o sul do Brasil.
“Desde quando comecei a fazer trilhas percebi que havia um delay, era ostensiva a falta de presença negra nas viagens”, conta ele. “Na tevê não há nenhum apresentador de programa de viagens negro, o que faz com que a pessoa negra não tenha com quem se identificar”, afirma.
Com dinheiro contado, a intenção inicial era hospedar-se em surf coaching, que é o aluguel de espaços em casa de pessoas com estrutura mais simples e barata que os Air Bnb da vida. “Mas só consegui ficar em duas casas, uma em Santos (SP) e outra em Joinville (SC), e isso porque a dona do lugar era uma mulher negra”. Pedir informações nas ruas, então, é um problema: “Em Santiago, a mulher achou que eu ia assaltá-la”, conta Soares, indignado.
Casos de racismo explícito não faltam na sociedade —e no segmento de turismo não seria diferente. Em outubro de 2020, a Caminhada São Paulo Negra, city tour que conta a história de lugares e personagens negros da capital paulista, organizado pela Black Bird Viagens e idealizado por Dias, foi interceptada por um grupo de policiais militares que alegou ter sido informado de que o passeio seria, na verdade, uma manifestação do movimento negro, e que teriam que ser acompanhados. De nada adiantou explicar que era só um passeio turístico e até mostrar o CNPJ da agência. O tour foi seguido por dois PMs em suas motos.
‘Racismo não tira férias’
A noção de que turismo é para poucos, avalia Soares, vem da época da revolução industrial, quando o empresário britânico Thomas Cook percebeu que as pessoas que estavam na cidade tinham anseio de conhecer outros lugares, que é uma necessidade do ser humano, está no nosso DNA. “Desde a pré-história, o ser humano se deslocava e era assim que a história se disseminava, mas quando todos ficaram presos às cidades, para a maioria havia o trabalho e uns poucos podiam se dar ao luxo de viajar por meses”, relata. “Foi aí que se cristalizou a ideia de que turismo era para poucos, um paradigma que precisa ser quebrado”.
Quem concorda com ele e trabalha para ajudar a quebrar esse paradigma é o jornalista Antonio Pita, cofundador do projeto Diáspora Black. Desde 2016, o grupo organiza caminhadas e viagens voltadas não só para pessoas negras, mas para a difusão da cultura, da história e da presença negra no país. “O turismo é um movimento de lazer, de diversão, mas o racismo não tira férias”, ressalta.
“O projeto Diáspora Black partiu da experiência, minha e de sócios como Carlos Humberto da Silva Filho, de situações que vivemos de discriminação e racismo em espaços turísticos”, conta Pita. “Havia barreiras, havia impedimentos para que serviços de qualidade nos atendessem como clientes e turistas, e entendemos que era importante levantar a discussão e educar e organizar os serviços dentro de um conceito de promoção da igualdade racial e diversidade”, acrescenta.
A Diáspora Black surgiu, então, com foco na promoção da história e do legado negros no Brasil, criando uma plataforma de compartilhamento não só de atividades como passeios e viagens, mas de hospedagem e parcerias.
“Ao todo, já levamos mais de quatro mil pessoas em nossas atividades, seja com passeios de poucas horas por cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, ou viagens mais longas por vários destinos turísticos, sempre com caminhadas guiadas para contar a história sob outra ótica, que conecte essas pessoas com a visão afro-brasileira, fazendo-as sentir-se pertencentes a esses espaços”, diz Pita.