O caso “yellowcake”
O yellowcake é a primeira fase de beneficiamento do urânio, fundamental para a produção do combustível das usinas nucleares, ou do plutônio, essencial para a bomba atômica. Numa transação por baixo dos panos, o Brasil “vendeu” 27 toneladas de yellowcake para o regime de Saddam Hussein através do Serviço Nacional de Informações (SNI), com a participação do proprietário da fábrica de material bélico Engesa, Whitaker Ribeiro, e do então governador Paulo Maluf.
Milhões de dólares abasteceram as contas dos envolvidos, do general Nilton Cruz chefe do SNI e de quase uma dezena de coronéis e generais!
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O negócio foi confirmado em 1991, depois da Guerra do Golfo, quando inspetores da Organização das Nações Unidas descobriram o arsenal de ucrânio enriquecido iraquiano, de origem brasileira.
Alexandre Von Baumgarten
Um corpo apareceu boiando na praia da Macumba, Rio, em outubro de 1982. No bolso da bermuda estavam os documentos do jornalista Alexandre von Baumgarten, desaparecido ha 13 dias.
Baumgarten fora visto pela última vez quando deixava o prédio em que morava. Havia saído com a esposa, Jeanette Hansen, para uma pescaria. O casal combinara encontrar o barqueiro Manuel Valente Pires no cais da Praça XV e de lá zarpariam a bordo da traineira Mirimi. O tempo estava fechado. Nunca mais foram vistos.
Três dias após a identificação no Instituto Médico Legal, Baumgarten foi enterrado como vítima de afogamento.
Em janeiro de 1983, a versão mudou. Uma reportagem publicada na revista Veja revelou que Baumgarten fora assassinado com dois tiros na cabeça e um no tórax. O laudo do IML, assim como as cápsulas de bala que estavam alojadas em seu corpo, estava anexado ao inquérito arquivado na 16ª DP da Barra da Tijuca, que não investigou o crime até receber ordem da Justiça!
Reportagem de Caco Barcellos sobre a nova versão para a morte de Alexandre von Baumgarten, que teria sido assassinado como queima de arquivo, na ação chamada de Operação Dragão, saiu no Jornal Nacional, em 05/04/1983.
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Em fevereiro, Veja já publicara um dossiê secreto, escrito Baumgarten, em que ele denunciava a existência de um esquema de lavagem de dinheiro envolvendo empresas privadas, o Serviço Nacional de Informação (SNI) e a revista O Cruzeiro (de qual Baumgarten fora sócio), que funcionava como uma mídia de apoio ao governo. O dossiê foi enviado a dez pessoas e tinha a indicação no envelope de que só poderia ser lido em caso de desaparecimento ou morte do jornalista.
O documento revelava que Baumgarten fora jurado de morte e acusava diretamente o general Newton Cruz, então chefe da Agência Central do SNI, de ser o autor da sentença.
O caso só começou a ser investigado com profundidade em 1985, quando o delegado Ivan Vasques, da Divisão de Homicídios da Polícia Civil, assumiu o processo. Ele indiciou três militares pelo desaparecimento e morte das vítimas. Em 1992, quando o general Newton Cruz foi a júri popular, acusado de planejar a morte de Alexandre von Baumgarten, o caso ocupou todos os telejornais da Globo.
Em 1992, entretanto, todos seriam absolvidos, por falta de provas!
Surgem contradições reveladas pelo jornalismo investigativo
No dia 2 de fevereiro de 1985, o caso arquivado pela Delegacia da Tijuca foi reaberto pelo delegado João Kepler Fontenelle, ele mesmo um ex-agente do DOI-CODI, a mando da Justiça.
Numa reportagem de Caco Barcellos, o delegado Fontenelle tentava explicar a confusão que acontecera na ocasião do enterro de Baumgarten. Segundo ele, havia dois cadáveres no IML no dia 25 de outubro de 1982, um morreu de afogamento, o outro, assassinado. Coincidência ou não, os laudos foram trocados.
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Com seus óculos de aviador, Fontenelle estava sorridente e afirmou que Baumgarten tinha um comportamento “muito violento e fanfarrão”, por isso, poderia ter tido uma “morte eventual” – afastando a hipótese veiculada na mídia desde o dia anterior, de que teria sido morto a mando do governo militar. Já o porta-voz do SNI disse apenas que responderia a órgãos do governo e não à imprensa.
Na realidade, apesar de Baumgarten ter sido enterrado como vítima de afogamento, a polícia já tinha o registro correto da perícia, mas nada fizera para investigar o crime.
Operação Dragão
Em 21 março de 1983, o delegado Fontenelle deu a investigação por encerrada e entregou o processo à Justiça. Mas o promotor Gerson Arraes, que passaria a acompanhar o caso, devolveu o inquérito à polícia, para que o SNI e todas as pessoas citadas no dossiê Baumgarten fossem ouvidas. Depois de um mês, o caso passou para as mãos do delegado Nils Kaufman.
Foi quando a polícia, pela primeira vez, cogitou a hipótese de assassinato por queima de arquivo. Afinal, Alexandre von Baumgarten fora agente do SNI e tinha sido um arquivo vivo de uma das maiores falcatruas envolvendo militares do serviço de informações do Estado brasileiro!
“Surge agora para a polícia investigar, uma nova versão para o crime, a Operação Dragão. A operação seria composta por cerca de oito homens, eles vieram de fora, de outros estados do Brasil e aqui no Rio de Janeiro tiveram apoio logístico. Conseguiram um barco e um helicóptero.
A partir daí passaram para a ação”, noticiou Caco Barcellos no Jornal Nacional. Segundo a reportagem, uma parte do grupo teria apanhado a mulher de Baumgarten e o barqueiro, a outra, o jornalista. Ele teria sido sequestrado, torturado e morto. A razão da tortura seria chantagem e documentos comprometedores que teria em seu poder.
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A hipótese da Justiça seria embasada por um laudo do Instituto Médico Legal, que indicava que Baumgarten não tinha restos de alimento no estômago quando foi encontrado. O que indicaria que ele passou dias sem comer, antes de ser morto.
Mesmo depois dos avanços, as investigações não apontaram suspeitos e, no fim do ano, o caso foi novamente arquivado.
O caso é reaberto pela terceira vez
Gravata borboleta, paletó alinhado e óculos com armação redonda. O delegado Ivan Vasques, da Divisão de Homicídios da Polícia Civil, se tornou muito conhecido em 1985.
Uma das primeiras medidas tomadas por Vasques foi de chamar para depor os militares apontados por Baumgarten de tramarem seu assassinato – naquele dossiê escrito em 1981. O general Newton Cruz foi o primeiro. O general declarou que a regra do SNI o isentava de depor sobre suas tarefas desempenhadas dentro do órgão e, portanto, não tinha muito o que dizer ao delegado.
Em 24 de junho de 1985, o coronel Dickson Grael, em depoimento espontâneo ao delegado Ivan Vasques, forneceu outros nomes de militares possivelmente envolvidos no assassinato, além do general Newton Cruz. Apontou os coronéis Ary Pereira e Ary Aguiar, como dois dos envolvidos.
Assim como o sargento Roberto Fábio, coronel Paulo Malhães e outro conhecido como Guimarães, que posteriormente seria identificado como Ailton Guimarães, que há algum tempo se dedicava ao jogo de bicho e ao contrabando de pedras preciosas.
Surge uma testemunha, que terminou assassinada
Na madrugada do dia 13 de outubro de 1982, o bailarino Claudio Polila estava sentado num degrau baixo do cais da Praça XV quando testemunhou um sequestro. Um grupo de homens armados conduziu um casal à traineira ancorada a 17 metros de seus olhos: eram seis pessoas.
Em 1985, Polila reconheceu o general Newton Cruz como uma das seis pessoas que estiveram no cais da Praça XV naquela noite, como mostrou a reportagem de Caco Barcellos para o JN no dia 29 de maio. A traineira, desaparecida desde o dia 13 outubro de 1983, pertencia ao barqueiro Manuel Pires, também desaparecido desde o dia do sequestro. A embarcação nunca foi encontrada, assim como os corpos de Jeanette Hansen e Manuel Pires.
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Polila foi ameaçado muitas vezes. Em 19 de setembro de 1985, ele foi ao Hospital da Aeronáutica para fazer um tratamento (era aposentado da Aeronáutica), mas misteriosamente foi dopado e acordou em um hospício. Foi salvo após ligar escondido para o delegado Ivan Vasques, que enviou policiais ao local.
Além disso, no dia 2 de outubro, enquanto caminhava na praia do Flamengo, escapou de uma tentativa de homicídio. De dentro de um Fusca, homens armados dispararam contra o dançarino, mas Polila foi salvo pelo segurança do Palácio do Catete, que acabou trocando tiros com os criminosos.
Anos após, em 1996, Polila foi encontrado morto em um valão em Caxias. Tinha marcas de tortura, espancamento e facadas. O delegado responsável pelo caso levantou a hipótese de “queima de arquivo”.
Militares acusados
No dia 20 de setembro de 1985, o delegado Ivan Vasques revelou à imprensa o nome de cinco homens suspeitos de participar no sequestro e morte de Baumgarten, Jeanette Hansen e Manuel Pires.
Os suspeitos seriam o general Newton Cruz, os coronéis Ary Aguiar Freire e Ary Pereira; o tenente-coronel Paulo Malhães e o sargento Roberto Fábio. Além destes militares ligados ao SNI, foi apontada a participação do ex-capitão Ailton Guimarães, oficial do DOI-CODI, o contrabandista.
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Em outubro, uma nova fonte surgiu para esquentar o caso. Preso em Brasília, por envolvimento na morte do jornalista Mário Eugênio, o ex-cabo do Exército David Antônio do Couto declarou à procuradora geral da Justiça Militar, Nadir Faria, ter informação de quatro pessoas envolvidas no assassinato de Baumgarten.
Seriam eles o coronel Sávio Costa, que ocupava a segunda seção do Exército no comando militar do Planalto; o sargento Paulo Roberto Fábio, um major de codinome Marcos, e o coronel Arídio de Souza Filho.
Em dezembro de 1987, o juiz do 1º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro enviou três militares a julgamento pelo sequestro e morte de Baumgarten: Newton Cruz, Carlos Alberto Duarte da Silva e Mozart Belo da Silva.
O julgamento
Em 1 de julho de 1992, o general da reserva Newton Cruz e o ex-agente do SNI, Mozart Belo e Silva, foram absolvidos em júri popular, em julgamento que durou cerca de 30 horas.
O ex-chefe da agência central do SNI era acusado de sequestro, homicídio qualificado e ocultação do cadáver do jornalista Alexandre von Baumgarten. O bailarino Cláudio Polila foi a única testemunha de acusação que se predispor a dizer o que sabia.
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Comissão da Verdade
Em 21 de março de 2014, uma figura que passara despercebida no inquérito arquivado do assassinato de Alexandre von Baumgarten veio à tona. A convite da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, o coronel da reserva Paulo Malhães prestou um depoimento de mais de três horas na sede do Arquivo Nacional, no qual admitia ter praticado tortura e cometido assassinatos durante a ditadura militar.
O coronel Paulo Malhães, então, acusou o coronel Freddie Perdigão de ter assassinado Alexandre von Baumgarten e jogado seu corpo ao mar, em 1982. Ato que considerou desastroso, já que o Exército, segundo ele, não costumava descartar suas vítimas deste modo. Preferia esquartejar e incinerar. Segundo Malhães, Perdigão teria perseguido a traineira Mirimi na Baía de Guanabara, matado o jornalista e afundado a embarcação.
Entretanto, o depoimento do coronel contrariava diversas evidências e provas já coletadas.
Antes de uma nova arguição, em junho de 2014, Paulo Malhães, em nova queima de arquivo, foi encontrado morto em seu sítio na Baixada Fluminense. O militar da reserva permaneceu durante nove horas em mãos dos assassinos. A polícia carioca, entretanto, concluiu que Malhães fora vítima de latrocínio, e jamais os encontrou. O caso foi arquivado.
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Já a revista Veja, em 2020, lançou ao noticiário uma dúvida extremamente importante: não seria a morte do advogado Bebiano, um dos artífices da candidatura de Bolsonaro em 2018, uma versão século XXI do caso Baumgarten?
Referência:
1. Pereira de Campos é autor do livro “Estranhas Catedrais” (Eduff), lançado em 2014, e ganhador do Prêmio Jabuti.
2. “Yellowcake”, de Alexande von Baumgarten, Editora Três ( obs.: edição impressa sem três paginas que foram roubadas por agentes do SNI, antes que o livro viesse a público).
Carlos Russo Jr, colaborador da Diálogos do Sul
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