‘Homem-Aranha’: Há 20 anos começava a nova era dos super-heróis no cinema – 02/05/2022

Quando eu entrei em um cinema de São Francisco em 3 de maio de 2002, em uma sala lotada para a estreia de “Homem-Aranha”, não fazia ideia que estava testemunhando um momento histórico.

Três dias depois, o filme de Sam Raimi, com Tobey Maguire no papel do herói, fechava sua estreia com pouco mais de US$ 114 milhões.

Foi o primeiro filme na história a quebrar a barreira dos nove dígitos em seu lançamento. Foi, também, o ponto de partida para um fenômeno que mudou por completo a indústria do cinema e da cultura pop.

O Homem-Aranha (finalmente) voltou a atacar duas décadas atrás

Imagem: Sony

Para entender o impacto de “Homem-Aranha”, vale voltar um pouco mais no tempo. Em 1985 a produtora Cannon, lendária por seus filmes de baixíssimo custo, adquiriu os direitos do personagem com a Marvel.

Os anos seguintes viram uma fileira de diretores e roteiristas (como Tobe Hooper, Joseph Zito e Albert Pyun) tentando buscar uma forma econômica de tirar o projeto do papel. O fracasso de “Superman IV – Em Busca da Paz” e “Mestres do Universo” fez com que as finanças da Cannon escorressem pelo ralo, e “Homem-Aranha” empacou.

Daí entram em cena os advogados da indústria do entretenimento. Diversas empresas injetaram, de alguma forma, dinheiro no desenvolvimento de “Homem-Aranha”, e todas queriam sua fatia da torta.

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Anúncio de ‘Homem-Aranha’ pela Cannon, projeto que nunca decolou

Imagem: Reprodução

No bolo entraram a 21st Century (o novo estúdio de um dos fundadores da Cannon), a Carolco (que fez “O Exterminador do Futuro 2”) e a MGM. Correndo por fora vinha a Columbia, do grupo Sony agarrando-se nos direitos para home vídeo de uma negociação pregressa.

Entre a porta giratória de artistas com um dedo no roteiro, que de mal, a pior, a desastroso, James Cameron entregou um dossiê com 57 páginas, metade roteiro, metade proposta de argumento, detalhando como seria sua visão para o herói.

A confusão finalmente terminou em 2000, quando a Sony fez um acordo de negócios com a MGM: eles deixariam de lado o projeto de produzir uma série paralela do agente 007 (um outro nó legal que fica para outro dia), em troca de o estúdio do leão abrir mão de tudo relacionado ao “Homem-Aranha”.

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Sam Raimi dirige Tobey Maguire e kirsten Dunst em ‘Homem-Aranha’

Imagem: Sony

Sam Raimi sequer estava na lista do estúdio para finalmente dirigir “Homem-Aranha”. Ainda assim, ele convenceu seu agente a marcar uma apresentação com os cabeças do filme, entre eles a chefe do estúdio, Amy Pascal, e Avi Arad, então presidente da Marvel Studios.

Os cineastas que passaram pela sabatina incluíam David Fincher (que não tinha interesse em fazer um filme de origem), Chris Columbus (que preferiu dirigir o primeiro “Harry Potter”) e Tim Burton (ele deixou a reunião dizendo que era “um cara da DC”).

Raimi, por sua vez, explicou que filmes de super-heróis nunca são sobre super-heróis. No caso de “Homem-Aranha”, a história que ele visualizava era sobre amor e tragédia, sobre um adolescente que perde tudo que lhe é mais caro para aprender uma dura lição: grandes poderes trazem grandes responsabilidades.

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O beijo mais comentado de 2002: molhado, premiado (pela MTV) e de ponta cabeça!

Imagem: Sony

A ideia do diretor de “A Morte do Demônio” e “Darkman” acertou em cheio nos anseios dos produtores e executivos envolvidos no projeto.

Um novo roteiro foi finalizado por David Koepp, usando elementos de várias versões anteriores (os outros roteiristas, inclusive Cameron, abriram mão dos créditos). O elenco aos poucos era reunido, inclusive Maguire, que foi para o topo da lista de Raimi depois de ele ver o ator no drama “Regras da Vida”.

Havia, claro, um burburinho em torno do projeto, que finalmente se concretizaria depois de mais de uma década no limbo. Adaptações de heróis de quadrinhos, afinal, estavam mortas desde “Batman & Robin”, de 1997.

“Blade”, lançado no ano seguinte, usou o personagem da Marvel como base para um filme de terror. “X-Men”, de 2000, foi um passo na direção certa mas não incendiou as plateias. Muita coisa repousava nas costas de “Homem-Aranha”, mesmo que então ninguém verbalizasse.

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Peter Parker testa seus poderes antes da tragédia que definiria sua vida

Imagem: Sony

Em 3 de janeiro de 2001, cinco dias antes de as filmagens começarem, eu estava em um grupo de uma dúzia de jornalistas, boa parte de revistas americanas especializadas em fantasia, terror e ficção científica, para uma coletiva de imprensa no estúdio 27 da Sony, em Los Angeles.

Sentados em um ringue que depois receberia o combate entre um Peter Parker ainda verde e o lutador Bonesaw McGraw (Randy Savage, que morreu em 2011), Raimi, Pascal e Arad, acompanhados de Tobey Maguire, Kirsten Dunst (que interpretou Mary Jane Watson), Willem Dafoe (o vilão Duende Verde) e James Franco (Harry Osborn, filho do Duende), compartilharam seu entusiasmo pelo filme.

Hoje é estranho imaginar que, mais de duas décadas atrás, “Homem-Aranha” não disparou um frenesi na imprensa, um surto coletivo entre fãs. Eu era, então, um dos poucos jornalistas brasileiros com algum interesse no filme. Bizarro.

Tudo mudou, claro, no fim de semana de 3 de maio de 2002. O burburinho em cima de “Homem-Aranha” alcançava níveis absurdos. Havia uma empolgação em descobrir algo verdadeiramente novo, um sentimento que os filmes de heróis das HQs atuais não conseguem reproduzir.

O primeiro teaser mostrou o herói se balançando por entre os prédios de Nova York, um triunfo da tecnologia digital que ainda engatinhava. A peça, que terminava no World Trade Center, foi removida do marketing após os ataques terroristas de 11 de setembro.

De repente, “Homem-Aranha” criava uma conexão com o mundo, e com todo o mundo. O herói de Nova York, um moleque como qualquer um, alguém que a vida passou inúmeras rasteiras, de repente ganhava o poder para fazer a diferença. Contrariando as expectativas mais cínicas, foi exatamente o que ele fez: salvou a cidade.

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Willem Dafoe ameaça o Aranha como o vilão Duende Verde

Imagem: Sony

A estreia de US$ 114 milhões logo se converteu em US$ 820 milhões em todo o mundo. O fenômeno foi como faíscas em palha seca, e logo super-heróis passaram a ser vistos como propriedade intelectual valiosa.

Na esteira de “Homem-Aranha” vieram “Demolidor”, “Hulk”, “Quarteto Fantástico” e continuações de “X-Men”. A concorrência entendeu que as fantasias coloridas são coadjuvantes de uma boa história e logo arrumaram sua casa com “Batman Begins”.

Foi um efeito dominó fantástico. Seus anos depois de “Homem-Aranha”, a Marvel tornou-se um estúdio independente e lançou “Homem de Ferro”, começando seu universo cinematográfico, hoje com quase trinta filmes e uma estrutura interconectada que, contrariando as expectativas, deu certo.

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Tobey Maguire voltou a ser o Homem-Aranha ano passado em ‘Sem Volta Para Casa’

Imagem: Sony

Sam Raimi e Tobey Maguire fizeram mais dois “Homem-Aranha” antes de a Sony arriscar um reboot com Andrew Garfield em 2012, finalmente cravando um acordo para o herói, agora interpretado por Tom Holland, aparecer nos filmes da Marvel, começando com “Capitão América: Guerra Civil” em 2016.

O Aranha ganhou uma série própria, com filmes mirando, entre um supervilão e outro, em conflitos típicos de adolescentes. O círculo se completou ano passado, quando “Homem-Aranha – Sem Volta Para Casa” reuniu Holland com Andrew Garfield e, claro, Tobey Maguire.

Sam Raimi, após um hiato de quase uma década longe do comando de um filme, retorna essa semana, justamente com a Marvel, em “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”. Ele não descarta a possibilidade de fazer um “Homem-Aranha 4” com Maguire. Que tempos estranhos e sensacionais!

A equação dos estúdios para medir o sucesso de um filme pode ser resumida em um bolo dividido em quatro fatias. Basicamente, o produto precisa apelar para homens e mulheres, abaixo e acima dos 25 anos de idade.

Quando um filme consegue morder duas dessas fatias, apelando para metade dos “quadrantes”, o sucesso é garantido. “Homem-Aranha” conquistou o bolo inteiro, trazendo algo para cada pedaço de público.

Foi esse “algo” que Sam Raimi levantou logo em sua primeira reunião para tentar garantir o trabalho de diretor em “Homem-Aranha”. Filmes de super-heróis não são sobre super-heróis.

São sobre pessoas, seus conflitos, suas tragédias, seus amores, sua dor e sua esperança. Elementos que ele conseguiu juntar vinte anos atrás, usando seus grandes poderes com grande responsabilidade, em “Homem-Aranha”.

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