Crise climática deve facilitar surgimento de novas pandemias

A vulnerabilidade dessas áreas tem a ver com o fato de que eles congregam muita biodiversidade e altitudes variáveis

Reinaldo José Lopes
São Carlos, SP

O processo de transmissão de novos vírus de uma espécie para outra, responsável pelo surgimento de todas as principais pandemias da história, provavelmente vai ficar bem mais comum com a crise climática, segundo uma análise coordenada por cientistas dos EUA.

De acordo com o trabalho, as alterações no clima provavelmente forçarão muitos animais a se deslocarem em busca de habitats compatíveis com sua sobrevivência, criando condições para que eles entrem em contato com espécies com as quais nunca tinham topado antes. Isso significa que os vírus que essas espécies carregam também terão uma chance inédita de invadir o organismo de novas vítimas.

De acordo com os cálculos feitos pela equipe liderada por Colin Carlson, da Universidade Georgetown (EUA), os contatos entre espécies até então isoladas entre si poderão resultar em 15 mil novos episódios de compartilhamento de vírus até 2070, caso a atual trajetória de aquecimento do planeta, provocada pela ação humana, não sofra desvios significativos nas próximas décadas.

“O nosso trabalho mostra que, acima de todos os fatores associados ao risco de novas pandemias, acima do desmatamento e do tráfico de animais, existem essas mudanças monumentais que estão afetando o clima. Elas já estão avançando, não estamos de olho nelas como deveríamos e elas fazem com que o risco de novas pandemias seja um problema para todo mundo”, declarou Carlson em entrevista coletiva online.

O americano e seus colegas acabam de publicar os dados na versão online do periódico científico Nature, um dos maiores do mundo. As estimativas feitas pelos pesquisadores se referem a uma simulação baseada na distribuição geográfica atual de quase 4.000 mamíferos placentários (a grande maioria do grupo; ficam de fora marsupiais, como cangurus e gambás, e os raros mamíferos que botam ovos, como os ornitorrincos).

Entre os mamíferos estão alguns dos animais que funcionam como grandes reservatórios de doenças emergentes hoje, como morcegos, primatas e roedores. Mesmo assim, a análise deixa de lado outra grande fonte dessas moléstias, as aves, cujo comportamento migratório costuma espalhar novas cepas do vírus da gripe mundo afora, por exemplo.


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Considerando as 4.000 espécies de mamíferos e os habitats que costumam ocupar hoje, os cientistas americanos usaram modelos de computador que ajudam a prever como o ambiente em torno deles vai mudar nas próximas décadas. Em muitos casos, os bichos precisariam se deslocar porque os locais que ocupam hoje ficariam muito quentes, muito chuvosos ou muito secos, por exemplo.

Nem todas as espécies conseguiriam se deslocar a tempo de acompanhar essas mudanças, mas as que sobrevivessem ao primeiro baque das alterações ambientais e achassem novas paragens entrariam em contato com presas, predadores e competidores que nunca tinham encontrado antes. E, como cada animal é um zoológico dos vírus que povoam seu organismo, trocas inéditas dos causadores de doenças acabariam se tornando inevitáveis.

As simulações indicam que esse processo provavelmente vai acontecer de forma mais intensa em áreas montanhosas do Sudeste Asiático e da África tropical –regiões, aliás, que já são bastante afetadas por doenças infecciosas emergentes.

A vulnerabilidade dessas áreas tem a ver com o fato de que eles congregam muita biodiversidade e altitudes variáveis (por causa das montanhas), o que permite que os animais que vivem em locais que estão ficando quentes demais tentem “subir a serra” em busca de ambientes mais frescos.


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O processo, por outro lado, deve ser menos frequente na Amazônia -mas por um péssimo motivo. Com muito menos variação de altitude, já que a bacia do Amazonas é, em grande parte, uma superplanície, espécies adaptadas a ambientes menos tórridos não teriam como buscar refúgio em regiões montanhosas.

A grande maioria das dezenas de milhares de trocas de vírus provavelmente não levará ao estabelecimento de novas epidemias, seja entre os animais, seja entre seres humanos, já que muitas vezes um novo vírus não consegue se adaptar ao hospedeiro diferente. O problema é que o número absoluto de transmissões é tão grande que alguns desses vírus podem acabar tendo muito sucesso, com consequências imprevisíveis.

Um exemplo particularmente assustador analisado na pesquisa é o do vírus ebola, que já causou diversos surtos mortíferos no continente africano ao longo das últimas décadas e hoje pode afetar 13 espécies de mamíferos. Os pesquisadores calculam que apenas o ebola poderia dar cem diferentes saltos entre espécies no período simulado pelo estudo.

Nesses processos, um potencial “curinga” são os morcegos, animais conhecidos por serem reservatórios de vírus perigosos e com uma mobilidade média bem mais alta do que a maioria dos mamíferos – consequência óbvia do fato de eles conseguirem voar. Em alguns casos, eles são capazes de deslocamentos em escala continental.


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Isso não é motivo para perseguir esses animais, é claro: o importante é intensificar o monitoramento dos vírus que afetam a biodiversidade para conhecer potenciais inimigos e tentar preparar respostas rápidas contra eles.

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