Quando publicou o romance “Alamut” em 1938, o escritor esloveno Vladimir Bartol vinha pensando na ascensão do fascismo na Europa. Daí a epígrafe que escolheu para o livro: “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”. Passado tanto tempo, arrepia que o mote ainda tenha força —particularmente em anos como estes, em que a desinformação tem moldado realidades políticas.
O livro chega ao Brasil pela editora Morro Branco, com tradução de Alexandre Boide. É um importante volume que por enquanto segue razoavelmente desconhecido, tanto aqui quanto no exterior. A série de videogame “Assassin’s Creed”, inspirada no livro, é ironicamente mais famosa do que ele.
Passado no século 11 e baseado em fatos reais, “Alamut” conta a história de Hassan ibn Sabbah, líder de uma seita ismailita no que é hoje o Irã. O ismailismo é um braço minoritário do xiismo, que por sua vez é um braço minoritário (mas expressivo) do islã. As divergências entre esses grupos são sutis —ismailitas acreditam que Ismail ibn Jafar deveria ter liderado os muçulmanos, em vez de Musa al-Kadhim—, mas não importam muito, no contexto do romance.
O importante é a organização que Sabbah criou: a Ordem dos Assassinos, uma tropa de elite especializada em matar seus rivais políticos e religiosos. Foi aparentemente desse episódio que veio a palavra “assassinos”, usada em línguas como o português.
A etimologia do termo é um pouco nebulosa. Há quem diga que vem do termo “assassiyun”, aqueles que seguem os fundamentos da religião. Outros ligam a palavra “hashashin” ao hashish, com base em relatos medievais de que os assassinos se drogavam antes de ir às suas missões. Seja como for, a ideia de treinar soldados para missões de assassinato acabou atrelada ao grupo.
No livro, fazendo jus à ideia de que “nada é verdadeiro, tudo é permitido”, Sabbah recruta e engana jovens promissores para que matem seus inimigos. Ele distorce e usa os preceitos dos ismailitas para radicalizá-los. Droga os guerreiros e faz com que acreditem que eles já têm acesso aos jardins do paraíso, ali mesmo em Alamut.
O livro é longo —576 páginas, na edição da Morro Branco– mas tem leitura rápida. É surpreendentemente fácil, dado o emaranhado de referências históricas, e Bartol tem um dedo habilidoso na hora de explicar quem são os ismailitas. Vai colocando a informação em diálogos, desemaranhando desavenças religiosas que não eram simples de entender nem mesmo quando aconteceram.
De maneira esquisita, “Alamut” tem um quê de “Harry Potter” e de “Duna”. Como a saga do bruxo, o livro começa com a descrição das diferentes aulas que os personagens têm com os professores na fortaleza. Como Frank Herbert faz em “Duna”, Bartol mergulha em termos e ideias da cultura árabe, persa e islâmica, mas sem deixar de se referir a questões do seu presente.
Bartol escreveu enquanto assistia à ascensão do fascismo na Europa. Por meio da história de Sabbah, ele trata do que lhe preocupava: o carisma e a distorção das informações para a manipulação política.
A edição da Morro Branco é cuidadosa em lembrar os leitores no início do livro de que é preciso ler “Alamut” nas entrelinhas. O texto não deve ser usado como evidência de que o islã é uma religião retrógrada, fundamentalista. Em 1938 —antes da Revolução Iraniana de 1979 e dos ataques do 11 de Setembro de 200—, essa não era a ideia de Bartol.
Também nesse sentido, o leitor com algum conhecimento da história médio-oriental precisa se controlar para não procurar erros de informação nas centenas de páginas do livro (por exemplo, os personagens parecem rezar na direção errada, em determinado trecho).
Para aproveitar a leitura é necessário, ainda, aceitar os estereótipos orientalistas que transbordam das páginas. Já nos primeiros capítulos o leitor encontra camelos, escravas, turbantes, cimitarras, eunucos, haréns, dança do ventre e menções às mil e uma noites —um compilado de todas as imagens surradas já usadas.
Como em todo trabalho de ficção, o autor pede que o público suspenda a sua descrença. Em outras palavras, que seja menos cricri e se envolva com o enredo. A epígrafe é clara: “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”. “Alamut” é um romance, e não um livro de história. Segue suas próprias regras, e está tudo bem.