Bienal de Veneza: Jonathas de Andrade representa Brasil – 19/04/2022 – Ilustrada

“Você entra por um ouvido e sai pelo outro.” Jonathas de Andrade, o artista que representa o Brasil na Bienal de Veneza que começa agora, soa tão literal quanto absurdo ao mostrar a entrada e a saída do pavilhão brasileiro nos Giardini que ele ocupa com suas obras agora.

O prédio de linhas austeras e pendor brutalista desenhado por Henrique Mindlin no momento ostenta uma gigantesca orelha à entrada, prefácio de alegoria de partes do corpo, fotografadas ou esculpidas, que continua pelas próximas duas salas do pavilhão.

Numa radiografia de toda a tensão que embrulha o estômago do Brasil atual, Andrade levou ao pé da letra expressões populares entre os brasileiros para criar uma série de esculturas e intervenções gráficas que ilustram, do modo mais literal possível, coisas como faca nos dentes, nó na garganta, fura olho, dedo podre, lamber os beiços, pé na jaca, ter as costas quentes ou o coração saindo pela boca.

“O coração sair pela boca é estar diante de uma coisa que assusta mas é também uma emoção. É estar nesse Brasil que a gente vive”, diz o artista, em entrevista. “É tentar traduzir o que estamos sentindo como um corpo coletivo.”

Esse tal coração, no caso, sai inflado de uma enorme boca suspensa no meio do pavilhão, uma bolha, músculo ou invasor avermelhado com jeito de vísceras que se alastra pela galeria e espanta o público, forçado então a contornar o parasita para ver as obras ali.

“Ele vai ocupando o espaço, o público se afasta, vai negociando, é uma coisa invasiva. Vai virando coração, língua, parece um parto, vísceras”, compara Andrade. “Você está sempre negociando a distância, como se comporta no espaço, como se estivesse sendo esmagado de um lado e de outro. Esses pedaços de corpos dizem muito sobre o Brasil que a gente está vivendo.”

Embora lembre um açougue, o arsenal de olhos, bocas e pés de Andrade não assusta.

Impressos em papelão recortado com os pontos de cor estourados lembrando a estética dos quadrinhos, os trabalhos têm a pegada pop dos gibis ou de uma alegoria carnavalesca, como queria o artista —a complicada logística da pandemia, no entanto, fez com que ele acabasse trabalhando em Veneza mesmo com artesãos das famosas máscaras da cidade italiana em vez de brasileiros envolvidos com as escolas de samba.

O visual das novas peças lembra as obras também de papelão que ele vem fazendo nos últimos anos —a novidade aqui é a cor, já que antes os registros de personagens era em preto e branco. E a novidade maior ainda é o uso mais ostensivo da escultura, também realizada em parceria com outros artesãos.

Lembra ainda o último trabalho que ele mostrou em São Paulo, no ano passado, na galeria Vermelho, em que fartas nádegas e coxas moldadas por artesãos vestiam como manequins desmembrados uma coleção de sungas usadas encontradas pelo artista em vestiários do Recife.

Andrade, que acaba de fazer 40 anos, é talvez o nome mais relevante de sua geração na arte brasileira e tem presença robusta no cenário global desde que despontou há quase duas décadas com trabalhos que jogam luz sobre o fracasso das utopias modernistas, o que teria forjado essa nação transtornada que hoje parece respirar por aparelhos.

Seu trabalho escancarou desde o início o calor e a carnalidade negadas pela austeridade do modernismo, mesmo em terras tropicais. Em Veneza, ele volta a insistir no corpo, agora talvez em tom de ópera bufa ou remetendo aos excessos da arte pop, como espécie de denominador comum do índice do sofrimento nacional —a era Bolsonaro, que ele chama de tensa e intensa, traduzida em alegoria.

“Quando pensei numa alegoria do Brasil, pensei em desejo e delírio, nos carnavalescos. Vamos pensar uma alegoria do Brasil através do corpo e do absurdo”, afirma Andrade. “Esses pedaços de corpos dizem muito sobre o Brasil que a gente está vivendo no momento. Começa com faca nos dentes, coração na boca e quebrar a cara. É lembrar o Brasil, mas não só lamentar. É pensar ainda em como reagir.”

Talvez inflamado pelo sentido de urgência diante das eleições no horizonte —o dedo podre da mostra, aliás, mostra um indicador apertando o botão de uma urna eletrônica—, o tom agora é muito mais estridente do que o habitual.

Desde o início, partindo da secura conceitual de “Ressaca Tropical”, a obra que rendeu a Andrade sua ascensão meteórica no circuito, o trabalho do artista manteve um ar de catálogo rigoroso, em que personagens de sangue quente pareciam bater de frente com estruturas arquitetônicas em vias de desmoronamento, imagem e texto justapostos para lamentar o corpo deslocado num cenário de destruição.

Seu dedo na ferida agora, ou no botão da urna, é muito mais literal, hiperbólico, como ele faz questão de enfatizar. Desavisados podem ver na mostra uma série de expressões populares ilustradas com excessos carnavalescos, mas Andrade espera provocar reações mais viscerais.

“Essa ambiguidade joga para todos os lados. Ao mesmo tempo que tudo parece festivo, lúdico e belo, não é tão distante para quem está conectado com o que está acontecendo”, diz Andrade. “É contra a sensação de adormecimento diante de todas as tragédias que estão acontecendo. Isso eleva a temperatura, é um jeito de comentar a situação-limite que a gente está vivendo com fragmentos de corpos.”

No fundo, ele diz ser uma reflexão ainda sobre o poder da língua. “A linguagem é a coisa mais democrática que existe, é elástica”, diz Andrade. “Só resiste mesmo o que se usa, tudo depende do presente para existir. Se eu inventar uma gíria, ela só vale se virar a gíria de um país. Isso também é falar sobre a nossa sociedade.”

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