Quando alguém comentava que as peças de Plínio Marcos seguiam atuais mesmo anos depois de escritas, o dramaturgo respondia que não era por mérito seu. Era culpa do país, dizia, que nunca melhorava.
Vai ser agridoce, assim, o lançamento da HQ “Barrela” em meados deste ano. O gibi, afinal, é uma adaptação de uma peça que Plínio publicou em 1958. Como uma pitonisa infalível, a obra segue descrevendo o Brasil.
Os temas centrais de “Barrela”, como a pobreza e a violência carcerária, são antigos no país. O que é inédito é o texto sair em um gibi, em vez de nos palcos. A publicação é da recém-fundada editora Brasa, com arte do quadrinista João Pinheiro, responsável por títulos como “Depois que o Brasil Acabou” e “Carolina”.
A chegada da HQ “Barrela” coincide com uma espécie de redescoberta de Plínio, que morreu em 1999. O Theatro Municipal paulistano estreia agora um “double bill”—duas peças juntas—de “Navalha na Carne”, de 1967, e “Homens de Papel”, de 1968. A composição da primeira ficou a cargo de Leonardo Martinelli, enquanto Elodie Bouny trabalhou com a segunda.
Lobo, dono da editora Brasa, conta que o projeto de levar “Barrela” para os quadrinhos era um sonho antigo, de mais de dez anos. “Gosto muito da literatura marginal, e o Plínio mudou a minha vida”, diz. “Eu comecei a ler a obra dele como uma pessoa e, quando terminei, já era outra.”
Os planos foram frustrados, em parte, pelo peso da responsabilidade de adaptar o texto seminal de um dos grandes dramaturgos brasileiros. Enquanto isso, o selo de quadrinhos onde Lobo trabalhava fechou e ele entrou em um longo período sabático, encerrado apenas recentemente.
Mas as coisas foram se ajeitando. Lobo ficou sabendo anos depois que o quadrinista João Pinheiro estava pensando também em levar Plínio às páginas dos gibis. Kiko Barros, filho do dramaturgo e representante legal de sua obra, também se envolveu na conversa e aprovou o projeto.
“Uma peça de teatro é um texto aberto”, Lobo afirma. “Quando um diretor interpreta o texto, ele dá a visão dele, e a mesma coisa pode ser feita nos quadrinhos. É como uma montagem teatral, reinventada.”
“Barrela” recebeu financiamento do Proac, o Programa de Ação Cultural do governo do Estado de São Paulo. O gibi está agora captando arrecadações no site Catarse e deve ser lançado em junho. Ele conta a história—inspirada em fatos reais—de um jovem preso por um pequeno delito e estuprado dentro do cárcere. É uma trama sombria, diz Lobo, com uma linguagem dura. Por isso, afirma, a técnica de claro-escuro do quadrinista Pinheiro é ideal para levar o texto dessa peça para os gibis.
“Muita gente acha que uma adaptação é uma simples transferência de uma linguagem para outra”, Pinheiro afirma. Longe disso. Ele conta que levou algum tempo até conseguir capturar o clima de “Barrela” e só então começou a transpor a história para os quadrinhos. Um de seus desafios foi resolver as limitações do espaço. A peça se passa dentro de uma cela de prisão. O risco era de que, em uma HQ, os quadrinhos se limitassem a cenas de cabeças e balões, registrando todos os diálogos.
“Uma das minhas soluções foi variar bastante os planos, o que me forçou a desenvolver um jeito novo de trabalhar as expressões dos personagens”, diz. “É como se você fosse o diretor e também o cinegrafista que escolhe os ângulos, e põe os personagens para atuar.”
Como em suas demais obras, Pinheiro trabalhou apenas com preto e branco. Os traços são particularmente finos, coroando um potente contraste entre luz e sombra. Ele compara o estilo ao dos gibis de terror dos anos 1970 e 1980, marcado pelo uso das hachuras. Tem também um quê de “gekiga”, um estilo de gibi japonês adulto. “Meu estilo tem mais a ver com esses caras do que com os quadrinhos americanos”, diz.
Pinheiro conta que, como Lobo, foi fisgado pelos escritores ditos malditos—como Plínio e Jack Kerouac—durante sua juventude. “O Plínio fala sobre as pessoas que foram massacradas pela sociedade, que foram jogadas no lixo. Isso me atrai. Sou morador da periferia e me interesso pelos marginalizados.” Além disso, os personagens de Plínio seguem infelizmente vivos nas ruas do país. “É assustador, mas não apenas o Brasil não melhorou quanto piorou”, Pinheiro afirma.
“A obra de teatro do Plínio é muito forte, muito visceral, e acaba tocando as pessoas de maneiras que elas não esperam”, diz seu filho Kiko Barros. Ele celebra a chegada de “Barrela” —texto que descreve como “tenso”— às HQs como uma maneira de falar com quem não tem acesso ao teatro.
Barros comemora também as duas óperas no Municipal, apesar de elas serem esse espelho honesto de uma realidade social que ainda não mudou. “O público não vai ver as peças e pensar, ‘ó, que passado distante!’. Vai sair da ópera e encontrar os personagens do lado de fora.”
“Plínio sofreu com a censura e, por isso, foi muito falado e pouco assistido”, diz Leonardo Martinelli, que compôs a ópera inspirada em “Navalha na Carne”. As peças viraram “baleias brancas”, diz. Ou seja: textos que todo o mundo sabia que existiam, mas não podiam ver. O próprio “Barrela” chegou a ser proibido.
“Essa redescoberta —tomara que seja uma redescoberta— é porque Plínio é um clássico e os assuntos não perderam a relevância. A obra dele continua explicando muita coisa.”