Naquele dia 6 de maio de 2021, a comunidade viveu mais de cinco horas de tiroteios intensos, que terminaram num cenário de terror
Júlia Barbon
Rio de Janeiro, RJ
O Ministério Público do Rio de Janeiro pediu o arquivamento das investigações de mais dez mortes no massacre da favela do Jacarezinho. Com isso, até agora, 15 dos 28 óbitos que ocorreram na operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro tiveram as apurações interrompidas.
Naquele dia 6 de maio de 2021, a comunidade viveu mais de cinco horas de tiroteios intensos, que terminaram num cenário de terror. Os óbitos ocorreram em 13 locais diferentes, tanto nas vielas quanto em casas de moradores, o que gerou investigações independentes da Promotoria.
Apenas 1 desses 13 inquéritos resultou em denúncia até aqui: o de Omar Pereira da Silva, jovem de 21 anos alvejado no quarto de uma criança. Outros quatro seguem em curso pelo Ministério Público, incluindo o do policial civil André Frias, assassinado no início da incursão, que deve gerar denúncia em breve.
Nos quatro novos pedidos de arquivamento, a força-tarefa do caso, liderada pelo promotor André Luis Cardoso, argumenta que não há provas suficientes para continuar as apurações, já que testemunhas oculares não foram localizadas, depoimentos divergem e laudos não sugerem “execuções” nem remoção de corpos.
Um dos pedidos, feito nesta segunda (28), refere-se a uma ocorrência com seis vítimas, mortas em um suposto confronto que se iniciou na rua Santa Laura e se prolongou até o terceiro andar de uma casa vazia, onde foram encontrados sinais de tiros cruzados em mais de uma parede.
“Desde o princípio, a investigação conviveu com as dificuldades de mortes ocorridas em via pública durante intensa troca de tiros enquanto operação policial, sendo que só por isso é esperada a ausência de testemunhas presenciais diante da necessidade premente de buscar abrigo”, escrevem eles.
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Os promotores dizem que a perícia e a versão dos policiais batem com o ferimento de um agente que foi baleado ali e com o “vasto material apreendido” (um fuzil, seis pistolas, cinco rádios, carregadores e drogas). Também anexam o vídeo de um dos criminosos ao chão, armado e ainda respirando.
O segundo pedido de arquivamento, também feito na segunda (28), refere-se a duas vítimas: Jonathan Araújo da Silva e Cleyton da Silva Freitas de Lima. O Ministério Público entendeu que era “temerário o aforamento de ação penal”, considerando, entre outras coisas, que as únicas pessoas presentes não quiseram falar.
Os dois foram atingidos separadamente, o primeiro em uma laje, e o segundo dentro de uma casa onde mais três homens foram presos, na travessa João Alberto. Mas os depoimentos de familiares e dos detidos divergem sobre quem eram os donos do imóvel e sobre como se deram os fatos.
Newsletter FolhaJus Dia Receba no seu email a seleção diária das principais notícias jurídicas; aberta para não assinantes. * O Ministério Público também cita que a perícia feita no local encontrou vestígios compatíveis com confronto, que os exames dos cadáveres não apontaram indícios de “execução” e que as roupas das vítimas não tinham sinais de que foram atingidas a curta distância ou arrastadas.
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“No curso deste procedimento, não foi apurado qualquer elemento de convicção capaz de indicar que a morte das vítimas não tenha ocorrido na forma mencionada pelos policiais civis, quando prestaram depoimento no inquérito policial, ao apresentarem a ocorrência”, concluíram.
Perícias feitas em São Paulo novamente ajudaram a Promotoria a chegar a essas conclusões. Uma equipe do Instituto de Criminalística paulista produziu ao menos 95 laudos sobre as vestes dos mortos no Jacarezinho. As provas já haviam sido usadas nos outros quatro arquivamentos feitos em fevereiro, como a Folha de S.Paulo mostrou.
Mortos no Jacarezinho que tiveram as investigações arquivadas Nesta quinta (31)
Raí Barreiros de Araújo (rua Santa Laura) Jonas do Carmo Santos (rua Santa Laura) Maurício Ferreira da Silva (rua Santa Laura) Rômulo Oliveira Lúcio (rua Santa Laura) Guilherme de Aquino Simões (rua Santa Laura) Pedro Donato de Santana (rua Santa Laura) Jonathan Araújo da Silva (travessa João Alberto) Cleyton da Silva Freitas de Lima (travessa João Alberto) Natan Oliveira de Almeida (em rua não especificada) Luiz Augusto Oliveira de Faria (próximo à rua do Rio) Em fevereiro
Bruno Brasil (rua do Areal) Carlos Ivan Avelino (Campo do Abóbora) ateus Gomes dos Santos (Beco da Síria) Marcio da Silva Bezerra (Valão) Rodrigo Paula de Barros (Valão) No terceiro pedido, de 23 de fevereiro, o Ministério Público trata da morte de Natan Oliveira de Almeida. Segundo o órgão, a apuração foi prejudicada porque ele foi atingido bem cedo numa rua deserta (não é especificada qual), já que naquele momento ocorria uma intensa troca de tiros.
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Os promotores citam que, na época do massacre, familiares afirmaram na mídia que o jovem teria sido “executado” na frente de várias pessoas. “Todavia, nenhuma das pretensas testemunhas jamais compareceu, seja espontaneamente, seja trazida por comissões de direitos humanos, ONGs ou Defensoria Pública”, diz o documento.
Eles argumentam ainda que os relatos de dois policiais envolvidos e de um delegado presente são compatíveis e que o exame cadavérico mostra que a vítima já havia sido atingida superficialmente por estilhaços (o que indicaria que ela já estava em confronto antes de ser baleada).
A análise do corpo e o boletim de atendimento médico também não indicaram ferimentos incompatíveis com a vida, o que torna plausível a narrativa dos policiais de que socorreram a vítima. A pistola apreendida com o homem foi periciada e estava com munição.
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Já o quarto pedido de arquivamento se refere ao caso de Luiz Augusto Oliveira de Faria, morto num tiroteio enquanto fugia com um grupo armado. A perseguição teria começado numa viela paralela à rua do Rio, seguindo para um beco e depois por dentro de um imóvel de três andares até o terraço, onde ele teria sido achado com múltiplos ferimentos.
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A Promotoria diz que ele só foi socorrido depois que os disparos cessaram, com a chegada de um helicóptero, e menciona um vídeo que mostra o cenário relatado pelos policiais. Escreve ainda que a mídia não falou sobre o caso e que não surgiu nenhuma versão distinta da descrita pelos policiais.
“Também a prova técnica reunida desautoriza contestar a versão policial de defesa legitima, já que a perícia de necropsia e as perícias nas vestes utilizadas pelo falecido não apontam sinais característicos de execução, de prévia prostração, proximidade nos disparos, mistura de corpos, ou ausência de envolvimento em confronto”, afirma.
Segundo as investigações, Luiz Augusto tinha “longo envolvimento no tráfico de drogas na vizinha comunidade Mandela, controlada pela mesma facção que atua no Jacarezinho”, o Comando Vermelho.
Oito meses depois do massacre, em janeiro deste ano, o governador Cláudio Castro (PL) decidiu usar o Jacarezinho e a favela da Muzema, na zona oeste do Rio, como projeto-piloto para seu programa Cidade Integrada, com a ocupação das comunidades pela Polícia Militar e a promessa de serviços e obras.