A rua não é lugar para nenhum ser humano viver

Filipe Sabará*

“A rua não é lugar para nenhum ser humano viver, mas foi o único que me acolheu”, desabafou numa entrevista o pedreiro José Carlos Corrêa, de 54 anos, refletindo o drama de quem viu o trabalho evaporar durante a fase mais aguda da pandemia. José Carlos, sem ter como pagar o aluguel de R$ 300 da quitinete onde morava, passou a perambular pelas ruas e depender da solidariedade para sobreviver. O cenário se repete em inúmeras cidades brasileiras, sobretudo nas capitais: são centenas de barracas, enfileiradas em largas avenidas, debaixo de marquises, túneis, viadutos. Famílias inteiras, com crianças, estão vivendo nas ruas.

A população em situação de rua no Brasil não apenas cresceu em ritmo avassalador com a crise econômica e social do país em meio à pandemia, nos últimos dois anos, mas também mudou drasticamente de perfil. As mulheres, e consequentemente crianças, passaram a ser um contingente bastante expressivo dessa população. O dado oficial mais recente em termos de país foi divulgado em março de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): mais de 220 mil brasileiros viviam nas ruas naquele ano. Mas há projeções que mostram que esse número cresceu para meio milhão de brasileiros, especialmente por falta de condições financeiras para pagar moradia.

Especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, um terço dessa população está na rua a partir da covid-19. São trabalhadores que já estavam em situação precária e que, com a crise sanitária, econômica e social ampla, perderam a sua rede de proteção social. Eles passaram a não ter outro recurso a não ser a rua. São ex-garçons, ex-carregadores, entre outras profissões, que perderam o trabalho. Sem condições de pagar aluguel, foram com a família toda para a rua. Na capital paulista, por exemplo, onde se tem um censo mais recente (janeiro deste ano), o contingente de pessoas vivendo em situação de rua aumentou mais de 30% em dois anos.

O curioso é que mais de 90% das pessoas que vivem em situação de rua na cidade de São Paulo frequentaram escola, sendo que quase 95% sabem ler e escrever, 4,5% concluíram o ensino superior, 22% têm ensino médio completo e 15% concluíram o ensino fundamental. É claro que muitas acabaram nessa condição por causa de conflitos familiares ou dependência de álcool e drogas, mas muitas delas foram para a rua por causa da perda de renda.

Perder o emprego já é um duro golpe na vida das pessoas. Há casais que se separam por causa da escassez de recursos, há famílias inteiras que ficam disfuncionais em virtude da queda na renda do (a) chefe mantenedor (a). Mas imagine uma situação em que a perda do emprego signifique que você vai ter de abrir mão do teto onde mora para encarar o frio da calçada e a mendicância. E que a sua família inteira também terá que passar por isso junto. Esse foi um roteiro repetido à exaustão durante o período mais complicado da crise do novo coronavírus.

Uma notícia publicada na semana passada, contudo, pode ser um indicativo de que essa realidade começou a mudar. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, que mostra a situação dos empregos formais e informais no Brasil, constatou que o desemprego caiu no país para pouco mais de 11% no trimestre encerrado em janeiro, menor taxa para o período desde 2016. A pesquisa também mostrou que 95 milhões de pessoas estavam ocupadas, alta de quase 2%. Já o nível da ocupação (porcentual de pessoas ocupadas na população em idade de trabalhar) foi estimado em 55%, quase 1 ponto porcentual frente ao trimestre anterior.

Esse crescimento é bom para toda a população. Faz-se importante ressaltar o quanto essa retomada é importante para a pessoa que acabou indo para a rua em razão da peculiaridade da situação em que ela se encontra. Eu, que dediquei grande parte da minha vida para resgatar pessoas em situação de rua, sei que quanto mais tempo uma pessoa vive nessa condição, mais complexa será sua reinserção na sociedade.

Esse novo contingente de pessoas que está agora nas ruas tem características mais conectadas com o que é ofertado pelas atuais políticas públicas e sociais: aproxima-se mais rapidamente de abrigos, está mais aberta a receber uma abordagem social e também consegue se integrar mais facilmente a uma rotina de trabalho quando consegue um emprego. Isso não quer dizer que temos de esquecer as pessoas que estão no relento faz tempo. A questão crucial é que as pessoas que vivem há décadas nas ruas criam estratégias de sobrevivência e se organizam de diferentes maneiras fora do sistema formal. Daí a maior complexidade de resgatá-las.

O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos cunhou a frase: “A carteira de trabalho é uma certidão de nascimento cívico”. E o número de empregados com carteira de trabalho assinada no setor privado no Brasil foi de quase 35 milhões de pessoas no trimestre encerrado em janeiro. A alta, de 2% contra o período anterior, representa cerca de 700 mil pessoas com empregos formais. Quero crer que essa alavancagem está contribuindo para tirar famílias do sofrimento que é ter que viver nas ruas.

Leia também: “Pobre São Paulo”, reportagem publicada na Edição 91 da Revista Oeste


*Filipe Sabará é empresário, filantropo, palestrante e gestor do braço social do Fundo Arcah Multimercado. É fundador da ARCAH, Associação de Resgate à Cidadania por Amor à Humanidade, uma instituição sem fins lucrativos que promove o desenvolvimento social de pessoas em situação de vulnerabilidade por meio de diferentes ações e projetos, com o intuito de ressignificar a vida de pessoas.

Deixe um comentário