Durante um show no início deste mês em São Paulo, a jovem Roberta Camargo, 25, tentou entrar em um dos espaços restritos do local para recuperar seu celular. Ao tentar explicar a situação a um dos seguranças, a mulher negra ouviu dele que “gente como ela, geralmente está mentindo”. A jovem não sabia, mas ela poderia denunciar o caso no portal online do Procon. E, desde esta semana, porém, a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor paulista inaugurou na Universidade Zumbi dos Palmares o 1º posto físico do Procon Racial para receber casos como o dela.
A iniciativa receberá denúncias de clientes que tenham sido vítimas de discriminação racial em estabelecimentos comerciais, como abordagens e revistas indevidas, acusações de roubo ou intimidação e constrangimento. O projeto foi criado após uma série de repercussões de casos de discrinminação racial pelo país. Entre eles, o de um homem negro que foi obrigado a retirar parte da roupa que usava em uma unidade da rede Assaí Atacadista em Limeira (SP) para provar que não havia furtado nenhum objeto, uma delegada negra que denunciou ter sido barrada na entrada da loja de roupas Zara, em Fortaleza (CE), e do jovem negro que foi perseguido e imobilizado em um shopping, no Rio, depois de ser acusado de roubar um relógio na loja Renner.
Agora, o objetivo é separar o atendimento das demais reclamações como cobranças indevidas, produtos com validade adulterada, problemas em contratos, entre outros, já realizados pela entidade. Segundo o diretor-executivo do Procon-SP, Fernando Capez, a “ação focada em discriminação racial nas relações de consumo é fundamental”.
“Cotidianamente pessoas negras são humilhadas, ignoradas ou monitoras por seguranças em lojas, restaurantes e bares, que a perseguem dentro desses espaços. Essa postura agressiva gera um constrangimento”, explica o diretor-executivo.
A intenção é que o posto físico inaugurado nesta terça (22) funcione como um teste para a implementação de unidades em outras cidades do estado, a fim de ampliar o atendimento direcionado. Por enquanto, denúncias de casos de fora da capital podem ser feitas nos postos de atendimento municipais do Procon e nas unidades do Poupatempo.
Sem burocratizar
Com uma chuva intensa durante o show que participava em 1º de março em uma casa de shows na Zona Oeste de São Paulo, Camargo pediu a uma das funcionárias do local para que guardasse seu celular. A funcionária, que atendia na área de camarote, aceitou e pediu que a cliente voltasse no final do show para buscá-lo.
Cumprindo o combinado, ao pedir para contatar a funcionária ou para adentrar o local para buscar seu celular, a jovem foi barrada pelos seguranças e constrangida. Ela chegou a pedir para falar com a gerência do local, quando ouviu do segurança do local uma frase ofensiva. Só depois de muita negociação e insistência, ela conseguiu contato com a funcionária e recuperou o celular.
Logo após o ocorrido, Roberta Camargo procurou ajuda jurídica. “Eu me senti péssima como consumidora, inclusive porque comprei bebidas que não consegui consumir. Paguei caro, fui destratada e não consegui aproveitar o show”, conta.
Com advogados, a casa de shows foi contatada e retornou à cliente para falar sobre a situação. O contato telefônico a desanimou ainda mais, que desistiu de seguir com a denúncia. “Eles me disseram que eu era linda e que não tinha que ficar triste”, lembra.
Além de um canal para fazer denúncias, o Procon Racial serve como canal de orientação às vítimas de discriminação racial. Segundo a jovem, esta pode ser uma boa ferramenta desde que não seja burocrática. “A situação já é tão desgastante, que se a reparação for difícil, é comum desistir”, diz.
De modo complementar, o Procon-SP também lançou a Plataforma Acolhe, portal que possibilita acesso a psicólogos, assistentes sociais e advogados para medidas jurídicas. Todos os serviços são gratuitos e fornecidos após agendamento.
“O racismo sofrido nos estabelecimentos comerciais têm um impacto muito grande ao que se refere à saúde mental, autoestima e autoimagem da pessoa preta porque essa violência remete a outras situações já vividas”, explica o psicólogo Nelson Gentil, especialista em impactos do racismo na subjetividade de pessoas negras.
O Procon-SP e a Universidade Zumbi dos Palmares também divulgaram uma cartilha informativa com “10 Princípios Básicos para o Combate ao Racismo nas Relações de Consumo”. O material dá dicas diretas sobre como deve ser o tratamento dentro dos estabelecimentos comerciais.
Entre os trechos, destacam-se: “são atos discriminatórios proibir ou constranger o ingresso ou permanência em estabelecimento aberto ao público, em razão da cor da sua pele, raça, etnia e quaisquer outras formas de discriminação” e “não se pode abordar, revistar ou imobilizar nenhuma pessoa em razão da cor da sua pele, raça, etnia ou qualquer outra forma de discriminação”.
“Nenhum agente privado pode exigir uma revista. Só quem tem legitimidade para isso são agentes públicos (policiais militares ou civis), mediante uma ação de suspeita concreta, que justifique a intromissão na sua liberdade pessoal”, explica o advogado André Luiz Moreira, do Coletivo Cidadania, focado em relações raciais.
Para Roberta Camargo, as medidas educativas são importantes, uma vez que podem mexer na estrutura do problema. “Para mim, a melhor justiça seria algo mais educacional e não punitivo. Não quero que o segurança que foi racista comigo seja demitido. Prefiro ver que a casa adotou uma política nova falando sobre racismo e qual deveria ser o tratamento adequado”, diz.
“É muito mais cômodo para uma grande empresa só demitir e deixar que os casos sigam acontecendo, do que de fato educar a equipe sobre questões raciais, de gênero, entre outros, que são importantes para respeitar as pessoas”, completa.