Zelensky, que é judeu e perdeu familiares no Holocausto, e o seu primeiro-ministro, Oleksiy Honcharuk, também legitimaram as milícias e grupos de extrema-direita (C14, grupo paramilitar da rede neonazi Blood&Honour, por exemplo) ao trabalharem com eles no que aos assuntos dos veteranos de guerra ucranianos diz respeito, escreveu o Bellingcat. Honcharuk e a ministra dos Veteranos, Oksana Koliada, participaram num concerto da banda neonazi Veterans Strong, conhecida pelas suas músicas supremacistas brancas e negacionistas do Holocausto, em outubro de 2019.
Entretanto, o treino, as armas e o equipamento dado pelos Estados-membros da NATO, principalmente EUA e Canadá, não pararam. Chegaram até a intensificar durante a presidência de Zelensky, apesar dos consecutivos avisos russos – a aliança atlântica reafirmou, a 14 de fevereiro de 2022, os seus esforços em melhorar as capacidades militares da Ucrânia. Muitas destas armas, inclusive mísseis antiáereos, chegaram às mãos do Azov apesar da proibição do Congresso dos EUA – há anos que a sua capacidade operacional se parece mais à de uma unidade ocidental do que à de um país de leste, tal é o equipamento de que dispõe.
Queixando-se de não ser ouvido ao longo dos anos quanto à expansão da NATO para o espaço pós-soviético e ao apoio militar à Ucrânia, Putin começou então a concentrar tropas nas fronteiras. Os Estados Unidos avisaram que uma invasão estaria prestes a acontecer – a primeira notícia foi dada pelo Washington Post a 3 de dezembro de 2021. Moscovo mentiu consecutivamente dizendo não ter planeada qualquer invasão, dizendo que eram meros exercícios militares com o seu aliado bielorrusso.
Putin tentou depois fabricar pretextos para levar a cabo uma invasão há muito escolhida e planeada. Tentou operações de bandeira falsa (a comunidade OSINT desempenhou um importante papel nas suas desconstruções), levou a cabo provocações e, sem conseguir o que tanto desejava, avançou na mesma, prometendo “desmilitarizar” e “desnazificar” a Ucrânia – narrativa propagandista com a intenção de justificar a invasão, quando o próprio Putin apoia a extrema-direita russa e europeia.
Ao mesmo tempo, a Ucrânia preparava-se para o pior dando treino militar aos civis aos fins-de-semana. As milícias de extrema-direita fizeram parte deste esforço, tendo uma nova oportunidade para chegar aos civis. As imagens de uma idosa a disparar uma AK-47 com a ajuda de um militar do Azov mostraram como o recrutamento, e a expansão das ideias da extrema-direita, pode ter ganho renovada força junto de uma população que receava o expansionismo russo, a que se juntou o (natural) sentimento patriótico e nacionalista de uma população agredida. E quando Zelensky ordenou a mobilização geral de todos os homens dos 18 aos 60 anos, muitos foram integrados nas fileiras das forças de Defesa Territorial pertencentes ao Azov. Os neonazis bateram palmas.
“A extrema-direita ucraniana é a principal beneficiária do lado ucraniano desta guerra, porque agora consegue atrair pessoas de todo o mundo e são vistos como a linha da frente na luta pela civilização branca”, explicou o jornalista ucraniano Lev Golinkin ao canal de televisão norte-americano Democracy Now.
Um desses benefícios foi deixado claro pela mudança de política do Facebook quanto ao Azov: o Batalhão estava na lista de Organizações e Indivíduos perigosos da rede social, mas, mal a invasão começou, os neonazis foram retirados dessa lista, revelou o The Intercept. Milhões de pessoas podem agora louvar os neonazis publicamente na rede social detida por Mark Zuckerberg.
Mas a situação vai ainda mais longe: a extrema-direita tem agora a oportunidade de se afirmar mais em cargos de liderança. No seguimento da invasão, Zelensky nomeou Maxym Marchenko governador da cidade portuária de Odessa. Marchenko é comandante do neonazi Batalhão Aidar e a Amnistia Internacional acusou a unidade militar de ter estado “envolvida em abusos generalizados, incluindo detenções ilegais, maus-tratos, roubos, extorsões e possíveis execuções”, em Lugansk.
“Com base na sua ideologia, a extrema-direita ucraniana persegue a sua própria visão da Ucrânia. Não é necessariamente a do presidente Zelensky, mas estão neste momento a lutar a mesma luta”, explicou Kuzmenko, referindo-se aos combates depois de a invasão ter começado.
Um exemplo claro de divergências foram as duras críticas de Andriy Biletsky, líder supremo do Azov, ao facto de Zelensky ter aceitado negociar com os russos – se o presidente e Putin chegarem a acordo, o primeiro vai ter de controlar os neonazis, não se sabendo como o poderá fazer. Não foi a primeira vez que Biletsky fez frente ao presidente: em 2019, ameaçou enviar dez mil voluntários para a cidade de Zolote, no Donbass, para contestar o recuo ordenado pelo presidente das linhas da frente.
A invasão pela Rússia aconteceu nas primeiras horas de 24 de fevereiro e o mundo parou – ou pelo menos assim têm dado a entender as televisões ocidentais. A resistência ucraniana, as dificuldades militares russas no terreno, as sanções, o isolamento internacional diplomático e económico russo e os apelos à paz não têm levado o presidente Vladimir Putin a ceder.
Numa primeira fase da invasão, as tropas russas mostraram alguma constrição em bombardear zonas residenciais, sobretudo se tivermos em conta o que fizeram noutras guerras. Mas, à medida que a frustração aumentava nos comandos militares russos, os bombardeamentos tornaram-se cada vez mais indiscriminados, causando milhares de vítimas civis. Basta olhar-se para o que Putin fez em Grozny, entre 1999 e 2000, na II Guerra da Chechénia, e na guerra civil síria para se perceber o que ainda poderá vir aí: transformou cidades inteiras em pó. Os corredores humanitários para a retirada dos civis são um forte sinal nesse sentido – apenas se estabelecem quando o objetivo é arrasar quem restar.
Um exemplo claro é o que está a acontecer na cidade de Mariupol, a mais próxima das linhas iniciais dos separatistas do Donbass. A cidade, cercada desde 2 de março, está sem água e eletricidade e os russos começaram a bombardeá-la indiscriminadamente (incluindo uma maternidade), arrasando-a e matando muitos civis. Não poucas vidas poderiam ter sido poupadas se a evacuação da cidade tivesse sido permitida.
Entre 24 de fevereiro e 2 de março, os neonazis do Azov não deixaram a população civil abandonar a cidade sob a ameaça de serem executados. “Como posso sair? Quando tentamos sair corremos o risco de encontrar uma patrulha de fascistas ucranianos, o Batalhão Azov”, disse à televisão grega SKAI, no final de fevereiro, um cidadão grego chamado Kiouranas, residente na cidade. “Iriam matar-me, são responsáveis por tudo.”
É a tal guerra total. É nas proximidades de Mariupol, onde reside uma comunidade grega considerável, que se localiza a principal base militar do Azov.
As tropas russas, principalmente os chechenos de Kadyrov, vêem nos neonazis do Azov um dos seus principais alvos, e não olham a meios para os matar. O comando russo deixou claro que qualquer militante da unidade neonazi não será poupado, mesmo que se renda. Serão executados no local, o que perfaz crime de guerra. Pouco depois de a invasão começar, circularam vídeos no Telegram de chechenos a dizer que iam caçar cada um dos militares do Azov, que era a sua jihad, enquanto os do Azov partilharam vídeos a molhar balas em banha de porco – os chechenos são muçulmanos.
“A extrema-direita é também mais vocal na sua intenção de lutar ainda mais duramente que os outros ucranianos”, explicou à Newsweek Brunson. Isto porque a tal “desnazificação” de Putin faz com que, para eles, seja mesmo um combate pela vida – e qualquer cedência negocial face aos russos não será por eles bem acolhida.
As tropas do Azov fora de Mariupol, principalmente as de Kiev e Kharkiv, vão reforçar-se com a chegada de milhares de combatentes estrangeiros. E o ministério da Defesa russo já deixou claro que os combatentes ocidentais que sejam capturados não serão considerados combatentes, mas sim mercenários, não tendo direito às proteções concedidas pelas Convenções de Genebra aos prisioneiros de guerra.
“Nenhum dos mercenários que o Ocidente está a enviar para a Ucrânia para lutar pelo regime nacionalista vai beneficiar do direito dos combatentes sob a lei internacional humanitária”, disse o ministério russo em comunicado, citado pela agência TASS.
Extrema-direita russa mobiliza-se
Enquanto faz estas ameaças, a Rússia também tem dado novos passos para fortalecer as suas fileiras com mercenários. Desde o início da invasão russa que mercenários do Grupo Wagner, cofundado por Valeryevich Utkin, neonazi condecorado pelo presidente russo, e considerado o braço militar não oficial do Kremlin, têm estado presentes na guerra. Fizeram até operações para assassinar o presidente ucraniano, mas agora a Rússia deverá enviar mais mil mercenários, segundo a CNN norte-americana.
Além destes mercenários, Vladimir Putin tem contado com o apoio da Guarda Nacional chechena liderada por Ramzan Kadyrov, responsável por crimes de guerra e contra os direitos humanos na Chechénia. Desde o início do conflito que participam nas operações militares e, poucas horas depois da invasão começar, mais de 12 mil chechenos começaram a dirigir-se para território ucraniano.
Também há relatos de que a Rússia estará a recrutar sírios com experiência em combate urbano para a guerra na Ucrânia, de acordo com o Wall Street Journal. O jornal norte-americano cita quatro fontes do governo dos Estados Unidos. O site Al–Monitor, que se dedica ao Médio Oriente, também relata esforços de recrutamentos por russos na Síria. O dedo está a ser apontado ao Grupo Wagner.
“Ambas as fontes confirmam que listas com potenciais recrutas estão a ser compiladas para serem apresentadas às forças russas estacionadas na Síria para aprovação, com a intenção de serem deslocados para a Ucrânia”, lê-se num relatório da organização da sociedade civil Syrians For Truth and Justice, citado pelo Al-Monitor. O Grupo Wagner também está a recrutar através do Telegram, diz o Counter Extremism Project.
Não é a única fonte a que Putin pode ir buscar combatentes. Apesar de a guerra estar a fazer com que milhares de pessoas protestem contra a invasão, o circuito de extrema-direita está a mobilizar-se apropriando-se do “Z” das colunas militares russas. O sentimento de isolamento russo, apresentado internamente pela comunicação social controlada pelo Kremlin como um ataque injustificado por parte do Ocidente, pode ser um forte catalisador para que elementos de grupos de extrema-direita se dirijam para a Ucrânia, à semelhança do que aconteceu desde 2014.
O sentimento de humilhação (e ameaça) já no passado deu um novo ímpeto à extrema-direita russa. O fim da União Soviética e a sentida humilhação dos russos pelo Ocidente foi uma grande força motriz para o ressurgir do nacionalismo russo. A economia ficou de rastos com políticas de choque neoliberais, o desemprego e a fome dispararam, os oligarcas tornaram-se os novos senhores. A NATO aproveitou-se da fraqueza russa e começou a expandir-se a partir de 1997 com a adesão de Estados que no passado fizeram parte do Pacto de Varsóvia ou da União Soviética.
A autoridade do Estado russo tremia na década de 1990 e a extrema-direita usou o caos e a humilhação sentida para se fortalecer, e estabelecer ligações internacionais com congéneres ocidentais – Alexander Dugin foi essencial neste processo. O principal ideólogo da extrema-direita russa criou e propagou pela Europa a orientação ideológica do euroasianismo: a Rússia é um poder central do continente euroasiático que se opõe ao mundo atlântico liderado pelos EUA e seus aliados. A destruição da NATO e da UE são dois pilares.
Não é apenas um conceito geopolítico, é também de valores: a etnia como valor primário, a tradição (conservadorismo) como trave mestra. E Putin tem-los usado nos últimos anos nos seus vários discursos, olhe-se para a forma como fala da Ucrânia não existente, um território subserviente à Rússia.
Este conceito de euroasianismo permitiu unificar a extrema-direita da Europa de leste, e até certos grupos na Europa Ocidental, numa mesma orientação ideológica entre a extrema-direita. Na Rússia, este campo político ganhou força e corria-se o risco de o movimento ser uma ameaça à ordem interna do Estado russo. Em 1999, Putin chegou a primeiro-ministro e, em 2000, tornou-se presidente. O novo czar quis controlar o Estado russo, reposicionar a Rússia como grande potência, e a ordem interna foi reposta com mão de ferro, à esquerda e à direita.
Putin avançou com uma estratégia autoritária: os grupos de extrema-direita que se submeteram ficaram descansados e passaram a ser apoiados; os que resistiram foram presos ou forçados ao exílio. O politólogo russo Anton Shekhovtsov chamou-lhe “nacionalismo controlado”.
As revoluções coloridas na Geórgia (2003) e na Ucrânia (2004 e 2014) puseram em causa a histórica influência russa e o Kremlin passou a apoiar movimentos ultranacionalistas para fragilizar os novos regimes. O discurso da identidade eslava como um só povo tornou-se pedra basilar dos desejos expansionistas do Kremlin.
Depois veio a anexação da Crimeia em 2014, e Putin voltou a usar argumentos étnicos inspirados nas ideias de Dugin, seu conselheiro. A extrema-direita europeia foi apanhada de surpresa e dividiu-se: uns apoiaram a anexação, outros foram contra. Houve um cisma entre a extrema-direita, aprofundando-se ainda mais depois com a guerra do leste da Ucrânia.
Putin exigiu então aos nacionalistas russos total lealdade ao Kremlin, e quem se subjugasse teria de o provar: ir combater para o Donbass, auxiliados pela secreta russa FSB. Os grupos que não se subjugaram foram banidos e os seus líderes presos, e se voltassem atrás, poderiam sair da prisão para ir combater no Donbass. A extrema-direita russa é, desde que Putin chegou ao poder, usada como força de choque e desestabilização, com o FSB a desempenhar um papel de controleiro. Daí que sejam vários os grupos que estiveram no Donbass – um deles foi o Russian Imperial Movement. E mais se poderão seguir, prolongando e intensificando a guerra.
Uma guerra total dizimando cidades inteiras e levada a cabo com uma parcela importante de milícias de um lado e do outro é receita para crimes de guerra e violações dos direitos humanos. A desumanização será tal que o direito internacional humanitário tornar-se-á letra-morta. As consequências são mais que óbvias: milhares de vidas, principalmente civis, perdidas e um fluxo constante de refugiados. Um país totalmente destruído.
(*) Publicado originalmente em Setenta e Quatro