Os segredos sinistros do traidor Cabo Anselmo – Notícias


Anselmo está sepultado. Viveu por 80 anos, e antes de eleger o túmulo como habitação, deixou atrás de si um imenso rol de interpretações, das mais variadas, boa parte em literatura engajada, que com esse tipo de conteúdo seletivo perde muito em documentação histórica.


Afinal, quem foi José Anselmo de Santos, o “cabo” em verdade marinheiro de primeira classe, que insuflou a moçada vestida de uniforme branco, com atos de indisciplina e quebra da hierarquia militar, fatos que acabariam provocando o que aconteceria em 1964?


Vou tentar explicar. Quando ele estava desaparecido, e ninguém sabia ao certo se estaria vivo ou morto, talvez fora do País, consegui entrevistá-lo. Uma longa conversa, que se transformaria no livro “Eu, cabo Anselmo”. Encontrei-o em Aracaju, passamos por sua terra natal, Itaporanga d’Ajuda, Sergipe, de lá fomos para Pernambuco, palco da morte de vários militantes, e por fim ao Rio de Janeiro, onde fica a Associação dos Fuzileiros Navais, lugar onde Anselmo proferiu um inflamado discurso, escrito por Carlos Marighella.


Foram duas semanas de convivência, hospedados nos mesmos hotéis, fazendo as refeições juntos, e vivendo as horas de descontração, fora das conversas informais, repletas de perguntas e respostas.


Julgo-me, então, em condições de decifrar um pouco melhor a controvertida personagem, odiada pela ala à esquerda e com certo respeito pela direita. Por que as controvérsias, ambas fulminantes?


Porque ele pisou ao mesmo tempo em barcos diferentes. De um lado, ingressou numa organização armada que tinha por objetivo derrubar o Governo. De outro, mudou completamente de opção, aderindo à polícia política, o DOPS, e passou a informar a repressão sobre os ex-parceiros, que por consequência seriam presos ou mortos. Duas faces, portanto.


O que significa isso? Muita coisa. Gosto de tomar como ponto de partida, nesse tipo de reflexão, uma poderosa frase do revolucionário filósofo francês Jacques Rousseau: “nada aqui embaixo merece ser comprado ao preço do sangue humano”.

Nada. Nada. Nada.


Não estamos diante de Canudos, na caatinga baiana, e nem do Contestado, a briga por terras no sul. Estamos com Joaquim Silvério dos Reis, o delator de Tiradentes, ou Calabar, os pró-invasores, no caso dos holandeses na costa brasileira. Acabou esquartejado, como traidor, com os membros do corpo expostos em praça pública. Aqui, muitos gostariam de fazer a mesma coisa, se pudessem, com Anselmo. Ele viveu seus últimos dias numa pacata chácara em Jundiaí (SP).  


Mas se ele nada tem de Antonio Conselheiro, ou de Domingos Calabar, qual o papel  que lhe caberia? Judas, talvez?


Aqui está o “x” da questão, agora detalhadamente revelado. Anselmo foi preso pelo DOPS num apartamento da rua Martins Fontes, em São Paulo. De lá, levado imediatamente para o DOPS, no largo General Osório, onde ficou nas mãos do temível delegado Sérgio Paranhos Fleury, o caçador implacável de genéricos “subversivos” e “terroristas”. A classificação, por vezes, era procedente, porque como já vimos com Rousseau, foi uma feroz guerra revolucionária com combatentes brasileiros divididos. Interprete o conflito armado à sua maneira, até porque até hoje ambas as partes se julgam com razão.


No DOPS, Anselmo passou pelos rituais de praxe. Cavalete, o pau-de-arara, choques elétricos e um tira de Fleury perguntando, empunhando uma faca, se ele – encapuzado – sabia onde estava. Diante da assustada negativa, o tira informava que ali era o inferno, e o nome do seu algoz era Lúcifer.


Fleury, além de torturador, era um  hábil explorador de fragilidades humanas. Percebeu que Anselmo não aguentaria os trancos. Engendrou, então, uma fórmula: Anselmo seria poupado, doravante. Sua prisão seria mantida em segredo. O marinheiro continuaria a manter contatos com os antigos companheiros, que cairiam em emboscadas fatais. Um James Bond às avessas.


Subestimou-se Fleury por muito tempo. Um erro tático, estrategicamente imperdoável. O que o delegado do DOPS conseguiu descobrir com esse esquema teve um longo alcance. A militância tenta esconder tais coisas até hoje, embora brigar com os fatos, como diria o provérbio chinês, seja inútil. Exemplos: Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, tão líder como Carlos Marighela e Carlos Lamarca, Yara Iavelberg, cairam em armadilhas sem saída. Houve outros traidores, os “cachorros” na linguagem da clandestinidade.



A morte do ex-capitão Carlos Lamarca, em Oliveira dos Brejinhos, Bahia, exigiu a rápida escolha de um sucessor. O ungido foi Onofre Pinto, ex-militar como Lamarca, que teria uma reunião com  militantes da esquerda armada em Abreu e Lima, município pernambucano. Ali estariam, entre outros, Soledad Viedma – companheira de Anselmo, de quem estava grávida – e Pauline Reichstul, linda moça tcheca, irmã de futuro presidente da Petrobrás.


Uma coisa dentre essas aventuras repletas de riscos nunca me entrou na cabeça: Fleury, do DOPS, nessa lavagem cerebral de Anselmo, escolheu um dos seus tiras para ser o parceiro dele na infiltração. O tira participou de reuniões, ouviu as análises sobre Cuba, onde Anselmo fez curso de guerrilha, as exposições sobre Stalin, evitando a narrativa sobre atrocidades  cometidas, tudo isso sem a menor condição intelectual de análises sobre Marx, Lênin, Trotski, os livros de Máximo Gorki, Dostoievski e Tolstói. Como isso foi possível? Não dá para entender, a não ser fragilidades em segurança pessoal.


Incrível, também, que recolhido ao DOPS, Anselmo ficasse no quinto andar do prédio, onde funcionava o Serviço Secreto, chefiado pelo delegado Romeu Tuma, sendo utilizado algumas vezes como escrivão de inquéritos.


Deduzo, por força da convivência, que Anselmo ficou órfão com a morte de Fleury, afogado na Ilha Bela, no dia 1º de maio de 1979. O delegado foi uma espécie de pai psicológico para ele, que a rigor nunca teve o pai por perto. Sempre o tratou respeitosamente por “doutor”. Após a morte do delegado, trabalhou numa empresa particular de segurança e desfrutou das benesses ofertadas pelas gestões antigas de Fiesp, que bancava as atividades repressivas do Exército, que também selecionava agentes da Polícia Civil e da Polícia Militar. Nesse lugar, Anselmo chegou a dar aulas sobre o estilo e as táticas guerrilheiras. O professor sobre segredos ficava encapuzado. A seleta plateia também. Ninguém sabia quem era quem.


Essa é a história de resumida de Anselmo. Muita coisa, entretanto, ficará escondida para sempre debaixo da terra.


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