Ninguém deve, parece-me óbvio, apelar ao vilão para que a história tenha um desfecho feliz. Então por que não tentar combinar o roteiro com o mocinho? Se não se pode apostar nos bons sentimentos de Vladimir Putin — e a tal imprensa ocidental se encarrega todos os dias de evidenciar a fealdade do monstro —, vamos estimular os bons sentimentos de Joe Biden, este homem que veio para “tornar a América grande outra vez”. Na guerra ao menos e até quando for possível…
Depois de Donald Trump, um biltre que mandava a democracia às favas todos os dias, culminando com a invasão do Capitólio, eis o simulacro meio decrépito de gendarme do planeta. E com que apetite! Querem saber? Os contínuos do Pentágono aqui e no resto do mundo podem ter alguma razão: vai ver o fato de a guerra nuclear ter voltado “ao âmbito do possível” — como admitiu Antonio Guterres, secretário-geral da ONU —, nada tenha mesmo a ver com a Rússia, a Ucrânia e a expansão da Otan… Parafraseando a famosa frase de James Carville, “É a China, idiota!”
Um dado antes de prosseguir. Nesta segunda, a China confinou 17 milhões de habitantes da cidade de Shenzhen, que liga Hong Kong ao sul do país. A política de “Covid Zero” adotada no país não pode conviver, imaginem vocês, com 66 novos casos da doença. A cidade abriga as poderosas Huawei e Tencent. A ordem é para que as pessoas permaneçam em casa, com testagem obrigatória. No domingo, o país registrou 3.939 casos da doença; nesta terça, 3.602. Isso corresponde a menos de 6% das ocorrências no Brasil, por exemplo, que está eliminando restrições. Ainda que os números chineses fossem falsos, como apontam alguns, o fato é que o país não dá mostras até agora de que pode relaxar a vigilância. As bolsas asiáticas fecharam em que da nesta terça. O índice Hang Seng, de Hong Kong, caiu 5,72%; no dia anterior, 5%. As notícias sobre a guerra pesaram, claro! Mas foi mesmo o receio dos impactos da Covid-19 na economia da China a determinar o resultado negativo.
Isso dá conta da importância que tem a segunda maior economia do mundo — tendente a ser a primeira em cinco anos — e verdadeiro motor do crescimento no planeta. Se a China tosse, espirra ou tem febre, os mercados reagem. O medo é de tal ordem que as medidas tomadas contra a doença — que potencialmente apontam para risco de desaceleração da economia do país e, pois, do mundo — derrubaram o preço do barril do petróleo abaixo de US$ 100. E, vejam vocês, não por bons motivos.
Pois não é que os EUA decidiram vazar para a imprensa informações de fontes não reveladas — claro! —, segundo as quais Putin pediu socorro militar — em equipamentos — a Xi Jinping, que teria concordado com o auxílio? Rússia e China negam. O aviso de Washington é claro: Pequim poderia se tornar alvo de sanções. Algumas, diga-se, bem leves, estão em curso em razão da guerra comercial.
Wang Yi, ministro das Relações Exteriores chinês, disse que seu país não pretende sofrer os efeitos das medidas aplicadas conta a Rússia. Afirmou o seguinte em conversa com José Manuel Albares, seu homólogo da Espanha:
“A China não faz parte da crise nem quer que as sanções a afetem, O país tem o direito de salvaguardar seus interesses legítimos”>
Qualquer que seja o resultado da guerra, a Rússia seguirá apartada da Europa — que nunca a quis de verdade — e, claro!, dos Estados Unidos. As sanções terão um efeito de longuíssimo prazo na economia russa, mas nem por isso o país deixará de ser a potência nuclear que é. Continuará a ser um ato relevante como inimigo e como amigo. E é um segredo de polichinelo que passa, como nunca antes, a pertencer à esfera de influência e interesses de Pequim. Os chineses, até agora, têm se equilibrado no fio da navalha. Não condenaram a invasão, mas também não apoiaram. Opõem-se às sanções econômicas, mas essa não é uma posição nova. Mas de uma vez, a China reiterou nos fóruns multilaterais a oposição a medidas dessa natureza. Até porque, com efeito, elas não se assentam no direito internacional — a exemplo da invasão de países soberanos. É preciso que fique claro que EUA e aliados estão recorrendo a ilegalidades, do ponto de vista das normas que regem a relação entre países, para combater a ilegalidade russa Não é um comportamento novo. Em bom brasileirês, esse tipo de “realismo” tem uma expressão: “Quem pode mais chora menos”.
Segundo o Banco Mundial, as sanções econômicas à Rússia custarão mais caro ao mundo do que a própria guerra da Ucrânia. Bem, essa é uma verdade que já podemos verificar por aqui. As perspectivas não são nada boas. Se é assim com uma economia que tem o PÌB comparável ao do Brasil, dá para imaginar o que aconteceria se os EUA resolvessem arrastar para o olho do furacão aquela que será em breve a maior economia do mundo. Uma medida interna de combate à Covid basta para derrubar os mercados do planeta. Os fanáticos da “democracia americana” — que é coisa distinta de ser um “fanático da democracia” — veem, pela primeira vez em muitos anos, os EUA na liderança efetiva do bloco que une o país aos europeus, cuja voz parece mais tímida no mundo hoje do que a de extremistas de direita da Europa do Leste.
Pois é. Todo esse aparente poderio pode conferir a ilusão da onipotência, de sorte que os EUA julgam razoável decretar a expulsão da Rússia da comunidade internacional e dar “diktats” aos chineses, que, fica claro, estão driblando o confronto. Empresas globais originárias do país não transgridem os termos das sanções. Mas certamente será perda de tempo confundir a China como “player” com o Estado que cuida da própria soberania. A ameaça americana tem o jeitão de bravata, mas coisas insanas, como vemos, podem acontecer, a exemplo da viagem de chefes de governo de Polônia, República Tcheca e Eslovênia a Kiev em meio a guerra. A questão não se resume à provocação barata. O risco é gigantesco.
Volodymyr Zelensky acena com a renúncia à entrada na Otan para evidenciar o que seria a sua boa-vontade. Por enquanto, é parte apenas do processo para transformar em vilão quem vilão já é. No momento, é mera parolagem. Seguindo o texto de seus redatores e os cuidados de sua equipe de produção, está exercendo o papel conhecido nessa guerra: acenou com a negociação, mas mandou seus negociadores anunciarem ao mundo que a derrota da Rússia está próxima — mais tardar em abril. E continua a pedir a zona de exclusão aérea.
Não vai mudar se não for estimulado a negociar e enquanto o número de cadáveres — ainda incompatível com o tamanho da operação militar — servir para engordar o seu currículo de herói. Observem: cada corpo de que se tem notícia contribui para confirmar a vilania de Putin e reforça a condição de mártir de Zelensky.
E, no fim das contas, essa guerra tenebrosa é um palco sangrentamente ilusório. Washington, como ficou claro de novo, luta com Pequim.