Uma das cenas mais lembradas de “Rambo 3” (1988) mostra o herói removendo um projétil de seu abdômen com a própria mão e depois cauterizando a ferida com pólvora. Mas foi outro trecho, bem mais discreto, que ganhou uma inesperada relevância à luz dos últimos acontecimentos no Afeganistão.
O filme se passa em meio à guerra travada por grupos rebeldes contra a União Soviética (URSS), que tinha invadido o país. Rambo (Sylvester Stallone) vai até lá para resgatar seu antigo mentor, o coronel Trautman, que havia sido capturado pelos soviéticos durante uma missão.
Rambo está na fronteira com o Paquistão. Ao seu lado, o afegão que o ajuda a entrar no território afegão explica que muitos já haviam tentado conquistar o país e falhado: Alexandre, o Grande, Gengis Khan, o Reino Unido — e, agora, era a vez dos soviéticos.
Ele comenta então que os afegãos são um povo que luta bravamente e que nunca será derrotado: “Um antigo inimigo fez uma oração. Ela diz: ‘Meu Deus, livrai-nos dos venenos das cobras, do dente do tigre e da vingança dos afegãos’. Entendeu o que significa?”.
Rambo responde: “Que vocês não se rendem por nada”.
Três décadas depois, o mundo assiste ao avanço do Taleban após a retirada das Forças Armadas dos Estados Unidos. O grupo extremista voltou ao comando do Afeganistão 20 anos depois da invasão americana.
As sementes dessa derrota histórica da maior potência militar do mundo foram plantadas na época que é retratada pelo terceiro “Rambo”.
Foi com o apoio dos Estados Unidos que os rebeldes, conhecidos como “mujahideen”, venceram os soviéticos, mas a insurgência contra os invasores desaguaria na formação do Taleban em meados dos anos 1990.
Sidney Ferreira Leite, doutor em História Social e professor de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, explica que os americanos deixaram a região em segundo plano depois de vencer os soviéticos e não contribuíram para tornar o Afeganistão uma nação. Os diferentes clãs e tribos do país travaram uma guerra civil até os talebãs chegarem ao poder, em 1996.
“Neste sentido, ‘Rambo 3’ é um documento histórico do fracasso da política externa dos Estados Unidos e do projeto americano de ser um farol para o mundo”, diz Leite.
Uma história de invasões e conflitos
O Afeganistão é um palco histórico de conflitos. Seja por causa da geografia — está no encontro entre a Ásia e o Oriente Médio — seja pela importância econômica — com suas rotas comerciais, campos de papoula e, hoje, oleodutos.
A história afegã é uma história de invasões. Seu território foi dominado por diferentes povos e impérios, como a Babilônia e os macedônios. As invasões árabes a partir do século 7 levaram o Islã à região.
As disputas geopolíticas foram marcadas pelas invasões e o domínio britânico, de meados do século 19 até o início do século 20. Décadas mais tarde, vieram os soviéticos, em dezembro de 1979, a pretexto de combater guerrilheiros que ameaçavam levar à URSS a luta em nome do Islã.
“Rambo 3” mostra os esforços dos americanos contra os soviéticos no Afeganistão, “um país que muitos nem conseguem encontrar no mapa”, como diz o coronel Trautman.
No filme, que é uma peça clássica da tentativa dos Estados Unidos de exercer influência sobre o mundo com Hollywood, os americanos vão até lá para ajudar a defender os afegãos de um massacre soviético. Os rebeldes, por sua vez, são apresentados como guerreiros que lutam a favor da liberdade.
“Para nós, essa guerra é sagrada, e não há morte verdadeira para os “mujahideen”, porque nós já fizemos nossos últimos ritos. Já nos consideramos mortos”, diz um líder rebelde ao explicar o conflito no país para Rambo. “Para nós, a morte por nossa terra e por nosso Deus é uma honra. Portanto, meu amigo, o que devemos fazer é parar com a matança de nossas mulheres e crianças.”
Os Estados Unidos deram um apoio declarado a estes grupos e ajudaram os insurgentes com equipamentos e armas militares, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). “O (presidente Ronald) Reagan chegou a receber eles na Casa Branca e os chamou de guerreiros da liberdade”, recorda.
A volta do Taleban
Poggio avalia que o erro cometido pelos americanos foi, assim como em outras partes do mundo, olhar para tudo sob a lente da disputa entre capitalismo e comunismo em meio àquele contexto da Guerra Fria.
“Os Estados Unidos cometeram um equívoco e acharam que o inimigo do seu inimigo era seu amigo, e houve grupos que se aproveitaram dessa visão americana um pouco ingênua”, diz Poggio. “Não levaram em conta que o país tem uma lógica tribal e não a de um Estado nacional, organizado segundo o modelo ocidental. Os códigos são distintos.”
Foi no vácuo de poder criado pela retirada soviética que os rebeldes travaram uma guerra civil que terminaria com o Taleban no poder. “Ninguém deu muita bola ao que estava acontecendo ali até que dois aviões se chocaram contra as Torres Gêmeas”, diz Poggio.
O Taleban foi derrubado por forças americanas que invadiram o Afeganistão após os ataques da Al-Qaeda aos Estados Unidos em 11 de setembro, sob a alegação de que o país dava apoio e abrigo ao líder da organização, Osama Bin Laden, mentor dos ataques de 11 de setembro.
Mas agora voltou rapidamente ao governo depois que os Estados Unidos, o Reino Unido e outros países que formavam a aliança militar que interveio no país retiraram suas tropas.
“Quando olhamos não só para o Afeganistão, que continua tão caótico quanto há 20 anos, mas também para Iraque, Síria e Líbia, vemos o fracasso desse modelo americano de fazer valer sua democracia sobre sociedades que têm forma de organização completamente diferente”, diz Sidney Ferreira Leite.
Ele avalia que, tanto no final dos anos 1980 quanto agora, os Estados Unidos foram ao Afeganistão para expulsar seu inimigo e não conseguiram construir as bases de uma estabilidade para o país. “Tinham que ter dados passos além de uma ação estritamente militar que acabou fomentando grupos terroristas que já existiam”, diz Leite.
Finais alternativos
“Rambo 3″ foi considerado em seu lançamento o filme mais caro já feito até então, com um orçamento estimado em US$ 63 milhões.
“O filme fecha a era Reagan e reconstitui no imaginário coletivo, depois da derrota na Guerra do Vietnã, um Estados Unidos vitorioso, o amanhecer de um país que retoma seu lugar como uma potência”, diz Leite.
O longa faturou US$ 189 milhões em bilheteria, mas foi um fracasso de crítica — é de longe o pior avaliado dos cinco filmes da franquia no site Rotten Tomatoes, com a aprovação de só 45% dos espectadores.
Uma polêmica frequente em torno dele costuma ressurgir sempre que os conflitos no Afeganistão vão parar nas manchetes como agora. Ela diz respeito a uma homenagem no fim do filme. Circula em fóruns e nas redes sociais uma suposta imagem da última cena.
A mensagem seria: “Esse filme é dedicado aos corajosos combatentes mujahideen do Afeganistão”. E, segundo esta versão, ela teria sido trocada só depois de 11 de setembro para algo inofensivo: “Esse filme é dedicado ao valente povo do Afeganistão”.
Mas isso é uma mentira, como mostra uma crítica publicada pelo jornal The New York Times e outros registros da época. Só a segunda mensagem é verdadeira — a outra é uma montagem.
O que não é uma lenda urbana é o fato de que o filme poderia ter um final bem diferente
No original, Rambo conclui sua missão e volta aos Estados Unidos. No fim alternativo, ele finalmente aceita seu papel de guerreiro e decide ficar com os mujahideen.
“Você me disse que, quando meu ciclo se fechasse, eu saberia meu lugar”, diz o herói ao coronel Trautman. “Por hora, acho que aqui é meu lugar.”
Rambo então desce do jipe, monta em um cavalo, se despede do coronel com um aceno e vai embora, se unindo de vez à luta dos rebeldes no Afeganistão.